Índice
I. Miguel Torga e o Segundo Modernismo (grupo da Presença)
II. Miguel Torga - vida e obra
1. Notas biográficas
2. A dimensão poética torguiana: perfil literário e estilístico
- o sentimento telúrico
- a problemática religiosa
- o desespero humanista
- o drama da criação poética
Miguel
TorGA
Segundo Modernismo (Grupo
da Presença)
Em 1927, nasce, em Coimbra, a revista
Presença, associando-se este
evento ao segundo
Modernismo.
Foi, sem dúvida, a revista Presença que serviu de veículo
transmissor dos ideais
modernistas, não sendo, por isso, de estranhar que nela
fossem publicados poemas de Fernando Pessoa e dos seus
heterónimos.
Mas Casais Monteiro insiste nas diferenças
existentes entre Orpheu e Presença, destacando o facto de esta segunda geração
se preocupar em
revelar a literatura anterior"... e, em
vez de reivindicar
louros para si, pede-os, exige-os para
as grandes figuras
que tinham criado,
por altura
da Primeira Guerra
Mundial, uma nova visão
da literatura, e aberto novos horizontes
aos seus meios
de expressão". Escolhe a originalidade, a sinceridade
e a personalidade e rejeita o lado excêntrico e intelectual do primeiro Modernismo, considerando-o uma arte
independente de modas
e flutuações de gosto.
A sensibilidade presencista liga-se à afirmação pessoal do poeta e percorre
autores muito
diversos.
Esta revista assume uma vertente
crítica e disciplinadora (sobrepondo-se
esta à inovadora), sob a pena de José Régio,
João Gaspar Simões, Adolfo Casais
Monteiro, e muitos outros
colaboradores, com especial
destaque para
Branquinho da Fonseca e Miguel Torga.
Convém salientar que Torga
rompe cedo com
o movimento presencista por considerar que os seus companheiros viviam afastados da realidade,
por se acharem diferentes
do homem comum.
Após o rompimento com
a Presença, onde
contribui literariamente com o seu nome verdadeiro – Adolfo Correia
da Rocha –, começa
a assinar os seus
poemas com
o pseudónimo Miguel Torga, justificando o primeiro nome como homenagem ao poeta espanhol Miguel de Unamuno e o segundo
(Torga) como forma
de estabelecer ligação
com a sua
terra natal, dado que este é o nome
de um arbusto
abundante em
Trás-os-Montes. (Peixoto: 2001, 94)
Notas biográficas
Miguel Torga é o pseudónimo literário
de Adolfo Correia da Rocha, nascido em
S. Martinho de Anta
(Trás-os-Montes), em 1907. Tem uma infância dura, durante a qual
recebe do pai, pobre
caseiro, um
carácter rígido e inflexível,
e da mãe, criada
de servir, a sensibilidade
que o tornará poeta.
Após a instrução
primária, vai servir
para o Porto. Como não se
adapta, ingressa, em
1918, no seminário de Lamego,
aconselhado pelo prior de
Paradela.
Dado o seu
carácter rebelde e a sua ânsia de liberdade, sai desse estabelecimento
eclesiástico ao fim
de dois anos
e embarca para o Brasil, em
1920, onde é acolhido por um tio e onde trabalha arduamente como
capinador, apanhador de café, vaqueiro e caçador de cobras.
Aí teve uma vida
muito difícil
até aos 16 anos.
Entretanto, o tio
apercebe-se das capacidades do jovem e prontifica-se a custear-lhe os estudos, primeiro no colégio do Ribeirão
e, mais tarde,
em Portugal, aonde
regressa em
1925. Completa em
três anos
o curso liceal (que
normalmente levava sete)
e aos 20 anos é admitido na Universidade de Coimbra, onde
inicia o curso de medicina,
que termina aos 24 anos.
Começa a exercer como médico rural em S. Martinho
de Anta. Transfere-se para
Leiria em 1937. Para
poder ter acesso às tipografias
e livrarias, fixa-se em Coimbra, depois
de se ter especializado em
otorrinolaringologia.
Casa com a
lusófila Andrée Crabbé, professora da Faculdade de letras da Universidade
Clássica de Lisboa, de quem tem uma filha,
Clara Crabbé Rocha,
também professora universitária.
Entre Dezembro
de 1939 e Fevereiro de 1940, esteve preso nas cadeias de
Leiria e no Aljube e, embora tivesse
pensado abandonar o país,
não o fez devido
ao amor que
sentia pela terra-mãe, aliás bem visível na sua obra.
Reparte
a sua vida
entre a medicina
e a escrita, sendo esta última a sua paixão, e morre em
Coimbra a 17 de Janeiro de 1995.
(Peixoto: 2001, 95)
A dimensão poética
torguiana: perfil literário
e estilístico
Torga é um escritor
que se situa no concreto
e que está ligado ao húmus natal. A sua obra é ele e a natureza, ele e
Portugal.
O seu estilo
poético é de uma eloquência sóbria, viril, que ou aquece
de entusiasmo, ou
fustiga. Pela escolha
das palavras, manifesta
uma inspiração genesíaca: sexo, cio, sémen, seiva, fecundar, germinar, parir, etc.,
juntando-lhe o delírio sensual das invocações
báquicas: o vinho, o mosto,
o cacho. Em
contraponto, existe outra
zona de inspiração, que ele traduz por termos como sonho, ilusão, aventura,
Deus, mito,
lua, estrela,
astral. O culto
da liberdade, a ânsia
de liberdade surge como
permanente traço
de união. É um
lírico que
fala de si,
se exibe e reabilita Narciso como o homem que se busca numa
imagem inteira.
No entanto, a presença
dos outros é condição
de plenitude, mas
também de incompreensão,
de isolamento forçado,
motivo de ressentimento e de amargura, visíveis nos
onze volumes do Diário.
Em Torga temos a sede
de fraternidade, o lamento
por não
ter sabido amar ou por o amigo se lhe haver negado. É o impulso afectivo para o outro que faz
dele o poeta da comunidade.
Torga é simultaneamente o poeta da angústia
e o poeta da esperança.
Angústia provocada pela
ausência de Deus
ou do divino nos homens,
pelas mortes. A esperança
é a resposta da vida
que em
nós continua a latejar.
Por isso,
o humanismo de
Torga consiste numa lição de juventude. O poeta denuncia,
ilumina, constrói.
O que há de invulgar
em
Miguel Torga é o facto de ele
se apresentar, quer
como poeta quer como prosador, como um ser inconfundível,
um telúrico padrão e um expoente da Pátria,
um artista
da língua em
que se exprime, um
legatário de valores culturais, um
receptor atento
e um transmissor
dos inúmeros problemas do Homem. Torga tem todo
o seu ser e toda a sua obra firmados no solo
onde se consubstanciam.
Torga é
considerado a voz de Trás-os-Montes e a voz de um povo rude e melancólico, mas de carácter firme
e nobre. Mostra-se preocupado
com a autenticidade
criadora, projectando na sua escrita as suas
preocupações com
o ser humano,
a sua necessidade
de transcendência. É visível, na sua
obra, um
sofrimento magoado, que se transforma em desassossego,
e que tanto
permite a esperança como
conduz ao desespero. (Peixoto: 2001,
95-96)
A poesia de Miguel Torga apresenta essencialmente
quatro linhas
orientadoras: um sentimento
telúrico; uma problemática
religiosa; um
desespero humanista;
o drama da criação
poética. Convém ter
presente que
estas linhas temáticas
podem coexistir num só
texto. O importante
é conhecê-las na sua globalidade para que se possam compreender muitos dos textos
poéticos torguianos.
A nível estilístico, Torga opta pelo
uso de estrofes
irregulares e deita mão
a uma diversidade de recursos, que
passam pela escolha
criteriosa de verbos
e tempos verbais,
por figuras
de estilo como
a antítese, a metáfora,
a adjectivação, e um conjunto diversificado de estratégias
que lhe
permitem expressar o que
realmente lhe
vai na alma.
[1] produto que resulta da decomposição dos vegetais e animais que se acumula no solo e constitui fonte de matéria orgânica. Em Torga, é aquilo que diz respeito à terra.
[2] simples e correcta.
[3] enérgico, vigoroso.
[4] castiga, maltrata.
[5] que está na génese, na origem, neste caso na terra-mãe, onde tudo se gera.
[6] chamamento para se fazer um ou mais pedidos; súplica. No contexto, significa que são chamadas, invocadas para a sua poesia.
[7] que diz respeito a Baco, deus do vinho.
[8] deus da antiguidade que era extremamente vaidoso e que se enamorou de si próprio.
[9] Humanismo - no contexto torguiano, significa que se preocupa com as injustiças e visa eliminá-las.
[10] Telúrico/telurismo - relativo à terra, ao solo. Influência do solo de uma região nos costumes, no carácter.
[11] Aquele a quem se deixou um legado, isto é, um valor, que pode ser uma qualquer herança.
O sentimento telúrico
Segundo Torga, o Homem
deve ser capaz
de realizar-se no mundo. Deve unir-se à terra, ser-lhe fiel, para que a vida tenha sentido
e o sagrado se exprima.
É na terra que a vida acontece e é aí
que se deve cumprir.
É nela que está a origem
da vida e dos tempos.
Por isso,
a terra surge, em
Torga, como um
ventre materno
e a tarefa do Homem
é orientar-se para esse
sentido criador,
genesíaco.
O
telurismo de Torga exprime-se no seu apego à terra, na sua fidelidade
ao povo, na sua
consciência de ser
português. Mas
o poeta não
se contenta em
elogiar a terra, na medida em que sente a condição
humana cheia
de limitações.
De qualquer modo,
o sentimento telúrico
presente na sua
obra revela bem
a ligação entre
o espírito genesíaco e o sentido do sagrado.
O seu apego
à terra-mãe surge em vários poemas,
nomeadamente em "Terra",
onde esta é personificada numa mulher disposta
à fecundação, ou
em "S. Leonardo de Galafura", testemunho perfeito
do amor telúrico
do poeta que em Diário II afirma:
"[...] devo à paisagem as poucas alegrias
que tive no mundo.
Os homens só
me deram tristezas
[...] a terra, com os seus vestidos e
as suas pregas,
essa foi sempre generosa.
[...] Vivo a natureza
integrado nela, de tal modo que chego
a sentir-me, em certas
ocasiões, pedra,
orvalho, flor
ou nevoeiro.
Nenhum outro
espectáculo me dá semelhante
plenitude e cria
no meu espírito
um sentido
tão acabado
do perfeito e do eterno".
E o seu apego à terra fá-lo evocar o mito de Anteu e declarar, em Diário
XI, que: "De todos
os mitos de que
tenho notícia, é o de Anteu que mais admiro
e mais vezes
ponho à prova, sem
me esquecer,
evidentemente, de deduzir
o tamanho do gigante
à escala humana,
e o corpo divino
da Terra olímpica ao chão natural de
Trás-os-Montes. [...] Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo
do desalento, toco
uma destas fragas, todas as energias
perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como
se recebesse instantaneamente uma transfusão
de seiva. Sei, contudo,
que o prodígio
não aconteceria sem
a força amorosa
do meu apelo,
que as virtudes
terapêuticas da fonte
estão também na certeza
da sede de quem
bebe".
Note-se que no período final desta declaração
torguiana está patenteada a crença de alguém que muito ama a terra e nela vê a cura para os seus males, principalmente porque
acredita no seu poder
terapêutico. (Peixoto: 2001, 97)
***
S. Martinho da Anta, Natal
de 1951
REGRESSO
Regresso
às fragas de onde me roubaram.
Ah!
Minha serra, minha dura infância!
Como
os rijos carvalhos me acenaram,
Mal
eu surgi, cansado, na distância!
Cantava
cada fonte à sua porta:
O
poeta voltou!
Atrás
ia ficando a terra morta
Dos
versos que o desterro esfarelou.
Depois
o céu abriu-se num sorriso,
E
eu deitei-me no colo dos penedos
A
contar aventuras e segredos
Aos
deuses do meu velho paraíso.
Miguel Torga, Diário X,
[1968], in Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 6.ª
edição, 2001
________
desterro
–
expulsão da pátria ou da terra onde reside; expatriação.
esfarelou
– reduziu
a pó.
Linhas de leitura:
Sentimentos dominantes
do sujeito poético:
- Cansado (v.4)
- Alegre, feliz, satisfeito,
eufórico.
Relação entre
poeta e natureza
é de intimidade e de afectividade.
Donde a importância do campo lexical que se refere à terra:
A quantidade e variedade
de vocábulos e expressões
que descravem a terra
tornam esse o campo lexical mais importante
do texto, quase
saturando o discurso poético. Assim:
- as referências
directas são "fragas", "minha serra",
"terra morta",
«colo dos penedos";
- há outras referências:
metonímica – "minha dura infância";
metafórica – «meu velho
paraíso";
- as referências
"rijos carvalhos"
e "cada fonte"
indicam, por sua
vez, realidades
indissociáveis da terra.
Donde o simbolismo
metafórico dos elementos
naturais, como:
- o carvalho
(Dic. dos Símbolos), instrumento de comunicação
entre a terra
(os homens) e o céu
(Deus);
- a fonte,
símbolo de maternidade,
nas culturas tradicionais é a origem da vida,
do renascimento, do poder
e da felicidade.
Assim sendo, o regresso
à terra-mãe equivale à recuperação
de forças, fazendo-o feliz,
satisfeito como
se estivesse no paraíso. A sua terra é o seu céu (terra como expressão de céu).
Tal como
Anteu que recebia energia e forças
da sua mãe
terra, assim
é o poeta que
ao contactar com a sua
terra restabelece a sua
força anímica.
Modos pelos
quais o Eu
alude à sua
infância:
- As fragas "de onde me
roubaram" (v.1) são metonímias da infância
do Eu, como
o segundo verso
confirma "Ah! minha serra, minha dura infância";
- o aceno
dos carvalhos metaforiza o reviver da infância que este regresso proporciona ao Eu;
- o sorriso aberto
do céu (cf. v. 9) e o "colo doa penedos"
(v. 10), por sua
vez, metaforizam a dimensão
maternal da terra – dimensão
que se harmoniza com
a temática da infância;
- "dura infância"
(v. 2), no entanto, remete para um aspecto menos agradável da rememoração.
Traços que
definem esse Eu
como poeta
Este Eu
que regressa
é caracterizado como
poeta:
- primeiro, por
intermédio da personificação de "cada fonte", que canta
"O poeta voltou" (v. 6);
- depois, também
na segunda estrofe
(vv. 8-9), pela referência
aos "versos" esfarelados sobre "a terra morta", assim
definida como
aquela que, não
sendo a terra natal,
é, pois, o "desterro";
- finalmente, a própria
actividade a que o Eu
se entrega quando
regressa ao seu
"paraíso" (v. 12), o "contar aventuras e segredos" (v. 11), é uma actividade que envolve palavras,
comunicação verbal,
o que vem amplificar
a imagem de poeta
que nele a serra
reconhece.
Reflexos no plano
morfossintáctico:
- adjectivação utilizada (rijos, cansado,
morta, velho)
serve para reforçar a
ideia de austeridade da vida;
- tipo de frase
exclamativo nos versos
2-6 a demonstrar o gosto
na chegada do sujeito
poético à sua terra;
- tipo de frase
declarativo no
resto do poema
a demonstrar com
mais calma
o que foi fazer.
- Reflexos no plano semântico:
- personificação dos carvalhos
e das fontes para
dar conta do bem estar do sujeito
poético na sua terra
(vv. 3 e 5);
- repetição do pronome
possessivo «minha»
a reforçar o apego
do sujeito poético à sua
terra de origem
e o facto de não se importar
de dizer que aquele espaço é
seu por
natureza.
Reflexos no plano fónico:
- assonância do som
nasal nos
primeiros cinco
versos condizente com
um primeiro momento ainda cansado;
- aliteração fonema /t/ (vv. 5-8) a cadenciar
a frase ao gozo
e entusiasmo que
a visão da terra
proporciona;
- assonância de sons
semi-abertos /i/ e /e/ em harmonia com o som fechado /o/ a traduzir
uma relaxação feliz no acto de invocar
coisas da terra.
Integração no universo
poético de Miguel Torga:
A poesia da Miguel Torga
está ligada ao canto
da terra dura
e bravia (que,
aliás, se associa, na biografia do autor,
a Trás-os-Montes) e dos seus valores de Integridade,
sobriedade e grandeza.
Assim, este poema
remete para veios
temáticos importantes
em
Miguel Torga, como:
- o canto das coisas
elementares;
- a
religiosidade própria do sentimento telúrico;
- a apologia da terra firme e das raízes que
nela se cravam;
- o canto do mundo agrário, da experiência
da pobreza e do esforço.
(Veríssimo: 1999b, 57;
GAVE: 1999, 134 – 1ªf. 2ªch.)
Questionário sobre o poema "Regresso", de Miguel Torga.
Para responderes a cada item, seleciona a
opção mais adequada ao conteúdo do texto.
1. No primeiro verso do poema, o poeta diz que
o roubaram à sua terra devido
a)
à sua dura infância.
b)
a ter partido sem que fosse sua vontade.
c)
à terra morta que nada produzia.
d) a ser um poeta que ninguém queria ler.
2. A reação da natureza ao regresso do poeta documenta o emprego
da
a)
personificação.
b)
enumeração.
c)
hipérbole.
d) comparação.
3. Pela forma como o poema está construído, poder-se-á afirmar
que ele tem
a)
uma componente narrativa e uma componente descritiva.
b)
uma componente expositiva e uma componente narrativa.
c)
uma componente expositiva e uma componente descritiva.
d) uma componente apenas descritiva.
4. Da leitura da última estrofe pode inferir-se que
a)
o poeta fica magoado com a rispidez da natureza.
b)
a reação da natureza é indiferente ao poeta.
c)
o poeta tem uma relação de cumplicidade com a natureza.
d) a natureza responde com hostilidade ao
regresso do poeta.
Chave de resposta: 1.b; 2.a; 3.a; 4.c.
(Fonte: Olimpíadas da
Língua Portuguesa Ensino Básico 1.ª Fase 2018. Portugal, Direção-Geral da
Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)
***
5
10
15
20
25
|
S.
LEONARDO DE GALAFURA1
A proa dum navio
de penedos,
A navegar num doce
mar de mosto2,
Capitão no seu
posto
De comando,
S.
Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa
de chegar ao seu
destino.
Ancorado
e feliz no cais
humano,
É num
antecipado desengano
Que ruma
em direcção ao cais
divino.
Lá não
terá socalcos3
Nem vinhedos
Na menina dos olhos
deslumbrados;
Doiros
desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor
da vida.
Por isso,
é devagar que
se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que
o rabelo4 avança
Debaixo dos seus
pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo5
a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho6!
Diário IX,
1964.
|
1 S. Leonardo de Galafura é
uma capelinha que existe no alto da montanha,
na freguesia com
o mesmo nome,
no concelho da Régua (Vila Real). Vista do sopé da montanha, dá a imagem
de navegar no espaço.
2 mosto
– sumo da uva
antes de se completar
a fermentação.
3 socalco – espécie de degrau
nas encostas, suportado por um muro, para se cultivar. Na região
do Alto Douro é em
socalcos que se cultiva a vinha.
4 rabelo – embarcação
típica, usada no rio
Douro para transporte
do vinho do Porto,
que tem por
leme um
remo muito
comprido e grosso.
5 sorvo
– gole; trago;
sorver – absorver; aspirar.
6 rosmaninho – planta aromática,
de flores violáceas designada por alecrim.
|
Questionário sobre o poema "S. Leonardo de Galafura", de Miguel Torga.
1. S.
Leonardo navega em direcção ao cais divino.
1.1.
Que meio de transporte
utiliza?
1.2.
Como é caracterizado o espaço que tem
de percorrer?
1.3.
Porque é que não
vai muito satisfeito,
sendo santo?
2. O poema revela uma estrutura
circular. Distinga as partes
lógicas em
que está estruturado e indique o assunto de cada
uma.
3. Para exprimir de forma artística a viagem,
foram utilizados muitos recursos expressivos.
Destaque:
3.1.
a forma como
a construção das estrofes
sugere a irregularidade do espaço a percorrer;
3.2.
a expressividade da alternância de vogais abertas
e fechadas, bem como
das aliterações;
3.3.
o valor do aspeto verbal;
3.4.
o domínio da coordenação;
3.5.
a importância das metáforas
«navio de penedos»,
«doce mar
de mosto», «ondas/Da
eternidade», «cais
humano», «cais
divino», «charcos
de luz», «Rasos,
todos os montes».
4. O texto é uma alegoria.
4.1.
Que se pretende enaltecer?
4.2.
É este um
texto telúrico?
Justifique.
(Guerra:
1999, 398)
***
A problemática
religiosa
A revolta
da inocência humana
contra a transcendência
Esta problemática assume em
Torga uma dinâmica especial
e revela-se, por vezes,
ambígua e contraditória.
Com efeito,
Torga parte da sua
experiência para
interrogar Deus,
palavra onde
reside a ambiguidade da sua poesia. É que
Torga revolta-se contra Deus, mas não se assume como
ateu. A negação surge porque
lhe perturba a razão
e porque pretende afirmar
o homem. Frequentemente, negar
Deus é negar
a representação que
Dele fazemos, como aliás
o próprio poeta confirma,
ao declarar em Diário
III: "Cá
por mim
só concebo Deus
dos aflitos, à porta
de quem se bate com
a angústia de alguém
que chama
o médico".
A ausência de um Deus mais humano e imanente é o que realmente
perturba o poeta. Por
isso, prefere questionar
a verdade de Deus
para afirmar o Homem e a necessidade
de este procurar
a verdade na Terra.
Como médico,
sofre, muitas vezes, por não salvar o paciente que morre, mas que procurara a esperança
do milagre que
só Deus
lhe poderia
ter concedido.
Por sentir constantemente as provações
da vida, própria
e alheia, é que
Torga entra em conflito
interior, causando-lhe o desespero religioso
que o leva
a um constante
monólogo com Deus, palavra que
assume como obsessão.
Sente que precisa
de Deus, mas
as suas conclusões
racionalistas tornam-no inatingível.
Esperança e desesperança
surgem como expressão
de um conflito
íntimo, bem patente no poema
"Desfecho", onde o poeta tenta negar a divindade, mas sente
a sua existência.
A descrença e a revolta
contra um
Deus transcendente
reflectem a angústia do poeta
que tenta
valorizar o Homem
e a Terra e, simultaneamente, a revolta da inocência
humana contra
a divindade transcendente.
(Peixoto: 2001, 98)
5
10
15
20
|
LIVRO DE HORAS
Aqui, diante
de mim,
Eu, pecador,
me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso
o bom e o mau
Que vão
ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são
três,
E dos pecados mortais,
Que são
sete,
Quando a terra não repete
Que são
mais.
Me confesso
O dono das minhas
horas.
O das facadas cegas
e raivosas
E o
das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
|
25
30
35
40
|
Me confesso
de ser charco
E luar de charco, é mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas
acima
E abaixo da minha
altura.
Me confesso
de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso
de Abel e de Caim.
Me confesso
de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso
de ser eu.
Eu, tal
e qual como
vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante
de mim!
O Outro Livro
de Job, 1936
|
Referências
bíblico-religiosoas:
Abel – Segundo filho
de Adão e Eva (Antigo Testamento). Como
era pastor,
decidiu oferecer a Deus
as primeiras crias do seu rebanho e as suas respectivas gorduras,
oferta que
foi melhor aceite
por Ele
do que os frutos
da terra oferecidos pelo seu irmão Caim.
Dominado pela inveja,
Caim matou Abel...
Caim – Primeiro filho de Adão e Eva (Antigo
Testamento). Movido pelo
ciúme, assassinou o irmão,
Abel, pelo facto do sacrifício
deste ter sido melhor
aceite por
Deus do que
o seu.
Job – (c. século V a.C) No Antigo
Testamento, líder
hebreu que,
no Livro de Job,
questionou o sofrimento que Deus infligia aos justos
enquanto ele
próprio era sujeito a grandes padecimentos.
Livro de Horas – livro
de devoções privadas
segundo um
esquema: começam com
um calendário
elaborado exclusivamente em função das festas religiosas. Seguem-se numerosas preces. Estas, compostas em
grande parte
de salmos, seguem o ritmo
quotidiano — as matinas, laudas, prima,
tércia, sexta e noa, as vésperas e as completas escalonam o dia.
Estrutura externa: poema constituído por
7 estrofes de tamanho
irregular, métrica
muito variável
e, no aspecto vocálico,
alternando o verso livre
com rimas
consoante e vocálica.
É um texto
com um
ritmo interior
vigoroso e um
hábil aproveitamento das sonoridades que
conduzem a uma fortíssima afirmação da subjectividade.
Tema: reconhecimento
da divisão interior
do Eu.
É um tema dilacerante para os homens do Orpheu e muito
recorrente na poesia
da Presença, movimento
que Torga esteve ligado até 1930.
Questionário sobre o poema "Livro de Horas", de Miguel Torga.
1. Atente no conteúdo do poema.
1.1. Estabeleça
uma relação entre
o título do poema,
o da obra em
que foi publicado e o tipo de discurso
utilizado.
2. Focalize a sua atenção na linguagem.
2.1. Justifique
o tempo verbal
predominante.
2.2. Demonstre
a expressividade da progressão textual quanto
aos tipos de frases
utilizados.
3. Atente nos versos 2 e 3: «Eu,
pecador, me
confesso / De ser
assim como
sou.»
3.1. Indique a razão
para a utilização das vírgulas no verso
2.
3.2. Demonstre a funcionalidade do termo
«assim» na construção
do poema.
4. Faça o levantamento de marcas textuais
próprias de um tom
confessional.
5. A composição poética dá conta da expressão de um
«eu» onde
coexistem duas dimensões: uma positiva e outra
negativa.
5.1. Proceda ao levantamento
de exemplos textuais
reveladores dessa oposição.
(Cardoso:
2003, 216)
***
5
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15
20
|
DESFECHO
Não tenho mais
palavras.
Gastei-as
a negar-te...
(Só a negar-te eu
pude combater
O terror de te ver
Em toda
a parte.)
Fosse qual fosse o chão
da caminhada,
Era certa
a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E
lutei, como luta
um solitário
Quando alguém
lhe perturba a solidão.
Fechado
num ouriço de recusas,
Soltei
a voz, arma
que tu
não usas,
Sempre silencioso
na agressão.
Mas o tempo
moeu na sua mó
O joio amargo
do que te
dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas
vão a par
na teimosia.
Câmara
Ardente (1962)
|
Linhas de leitura sobre o poema "Desfecho", de Miguel Torga.
Poema constituído por
quatro quintilhas,
sendo as duas primeiras de métrica muito irregular
e a terceira e quarta
decassilábicas, com excepção do penúltimo verso
que é um
hexassílabo
No aspecto rimático há, em
todas as estrofes, um
primeiro verso
solto, embora, no caso
da primeira e segunda
estrofes, se possa falar
de rima toante
em "a" com
o segundo verso.
Os restantes versos são
emparelhados, cruzados ou interpolados, segundo
o esquema rimático ABCCB / DEFEF / GHIIH / JKLLK.
O título do poema
indicia claramente uma luta de que se
prevê um desenlace.
Os dois contendores (adversários)
são:
O sujeito lírico – caracterizado como
combativo (v. 3), ruidoso
(v. 14), aborrecido com
a presença do «tu»
(v. 12).
O «tu» – omnipresente, importuno (v. 8) e silencioso (v. 9).
Nesse combate (vv. 3, 11) o «eu»
usa como
arma a palavra
(v. 1) enquanto o «tu»
utiliza o silêncio (vv. 9, 15).
O desenlace consiste na obstinação
de ambos (v. 18); o «eu» acaba por seguir o método do «tu»: o silêncio
(v. 19, «mudos»).
A luta é um processo, um percurso
que se torna
visível no poema,
estruturado nas seguinte partes lógicas:
1.ª parte:
estrofes I e
II
|
em que se definem uma temática
religiosa
e uma situação
de luta,
se identificam os contendores em situação
de luta – o Eu,
que passou a vida
a negar Deus
–
e se antecipa o resultado
(«desfecho»): «não
tenho mais palavras».
|
2.ª parte:
estrofe III
|
em que se apresentam os processos
(instrumentos) de luta
utilizados pelo Eu
contra a presença
«impertinente» (incómoda) e agressivamente calada
de Deus: a recusa e o grito.
|
3.ª parte:
estrofe IV
|
Conclusão em que se
descrevem os resultados desse combate: o tempo
passou e digeriu a amargura dos gritos
do Eu, reduziu-o ao silêncio, ficou mudo
como o seu
adversário. E agora
são dois
frustrados, ambos teimosos.
Nenhum convenceu o outro.
Como que regressamos ao primeiro
verso – «Não
tenho mais palavras»
– e compreendemos a propriedade do título.
|
As palavras («E», «Mas»
– conjunções copulativa e adversativa) estabelecem a ligação
entre as partes
lógicas.
A nível do discurso,
destaca-se:
–
a riqueza das
sonoridades:
Aliteração do fonema
/t/ ao longo do texto:
sugestão de intensidade
da luta;
Aliteração do fonema
/m/ nos versos 16-17 e 19: sugestão,
respectivamente, de amargura da impotência do «eu»
para vencer o «tu» e a frustração
de que de ambos
se apodera.
Os sucessivos transportes
nas 1ª e 2ª estrofes: ritmo vivo.
A tonalidade nasal:
tristeza da impossibilidade de vitória.
–
A expressividade da adjectivação: os adjectivos
revelam a atitude do «tu»
e o malogro (frustração)
de ambos (impertinente,
calado, paciente,
fechado, silencioso, amargo, obstinados,
mudos, malogrados).
–
O léxico
ligado à intransigência (obstinados, teimosia),
dureza (combater,
lutei) e negatividade (negar-te, mudos,
malogrados).
–
Comparação: E lutei como luta um solitário / Quando alguém lhe perturba a solidão.
–
Metáforas:
gastei-as
(v. 5) (as palavras não se gastam);
o chão da caminhada
(v. 6) = todos os locais;
soltei a
voz = gritei;
arma (v. 14) = instrumento
de combate.
agressão (v. 15)
–
Imagens:
Fechado
num ouriço de recusas (v. 13)
= recusa total de ceder;
o tempo moeu na sua
mó / O joio amargo = o tempo
destruiu as suas palavras.
Em síntese,
o sentido do título
aponta para uma longa
luta entre
o imanente e o transcendente com
o desenlace do silêncio.
Miguel Torga recusa-se a aceitar o Deus tradicional, numa atitude
de rebeldia que
caracteriza toda a sua
obra literária.
(Guerra: 1999, 393-394; O Movimento
«Presença» – Miguel Torga e José Régio, Ed. Sebenta)
«[...] Deus não nos vê, Deus não nos ouve. Deus não nos
conhece. Deus é o silêncio,
Deus é a ausência,
Deus é a solidão
dos homens. O homem
está sozinho. E é sozinho
que decide o mal
ou inventa
o bem. Não
existe autoridade superior
ou absoluto
algum perante
os quais o homem
deva ou
possa justificar-se. Que ganha o homem em troco da negação de Deus?
A sua identidade
e autonomia, mas
de maneira nenhuma uma vida mais fácil. A partir de agora tem de assumir a responsabilidade de tudo.
O homem não
pode esperar mais
pontos de apoio
situados fora da sua
própria pessoa.
A sua existência
não depende de ninguém.
Resta-lhe o imperativo da liberdade para a construir.» (Fernão de Magalhães Gonçalves, Ser
e Ler Torga)
O desespero humanista
Um dos aspectos
mais significativos
da temática torguiana é o desespero humanista,
que o poeta
apresenta, algumas vezes, sob a forma de protesto, de revolta
e de inconformismo.
Na sua condição de
artista, Torga vive inquieto com a vida humana, a existência,
o destino, o sentido
da morte, a condição
terrena. Verdadeiramente humanista, problematiza a criação,
as limitações do homem,
que o existencialismo
desenvolverá.
É
frequente verificar-se que o desespero dá lugar
à esperança, principalmente
porque Torga, como
poeta, é chamado a gritar
a sua solidariedade
humanista com
todos os que
são abandonados, competindo-lhe, a ele, lançar-lhes na alma
a chama da esperança,
uma espécie de luz
que se acende na imensa
noite.
Tal como
se disse, a revolta e o inconformismo
traduzem o desespero humanista torguiano, mas
a liberdade e a esperança
são valores
que articulam o seu
humanismo.
É nesta perspectiva que
surge o aproveitamento do mito de Orfeu.
Torga compara a descida de Orfeu aos Infernos, para ir buscar Eurídice, com a descida que o próprio faz ao mais fundo de si, ao inferno
do seu ser, onde enfrentou o medo, a vergonha e o assombro.
Veja-se a propósito desta comparação o esquema que se segue:
Expressa, por
vezes, o seu
drama interior,
todavia também
revela a tristeza de não
conseguir iluminar a sua poesia. Mas, quer numa quer noutra situação,
Torga assume uma atitude de protesto,
de rebeldia.
Em Orfeu
Rebelde, por exemplo, a rebeldia do poeta é diferente da de Orfeu, pois
não se trata
da perda da amada,
mas da revolta
em "fúria",
"como um
possesso", contra
a morte e a passagem
inexorável do tempo. Torga recusa a poesia
lamecha dos
românticos ("rouxinóis") e recorre a uma expressão
violenta, agressiva,
para vencer aquilo que o instinto adivinha
e o sujeito recusa. Não
lhe interessa se o canto
é "de terror ou
de beleza"; ele
assume-se, como os clássicos,
como alguém
que se defende e procura
encontrar a eternidade
na realização poética
("Canto, a ver
se o meu canto
compromete / A eternidade do meu sofrimento"),
Em A Criação do Mundo ("Sexto
Dia"), Torga declara: "O
contacto profissional com o sofrimento humano
como que
dava corpo físico
à minha dolorosa
consciência da grandeza
trágica da nossa
condição; a intimidade
lúdica com
a natureza restaurava, por sua vez, na acuidade
activa dos sentidos, a certeza de que
há na vida uma tenacidade intrínseca que,
contrariando os desesperos da razão, é um permanente acto de fé
na graça lustral
da esperança."
O humanismo torguiano é um
humanismo revolucionário,
próprio de um
revoltado, de um rebelde,
e articula-se em dois
valores importantíssimos: a liberdade e a esperança.
O poema
Orfeu Rebelde exemplifica este humanismo
de um revolucionário.
Aliás, o mito
de Orfeu é muito querido
a Torga, por retratar
a rebeldia de quem
não aceita os limites
que lhe
são impostos.
Como poeta,
Torga considera-se chamado a gritar a sua solidariedade
humanista com
todos os que
são abandonados, competindo-lhe a ele lançar-lhes na alma
a chama da esperança.
O desespero surge para
fazer nascer a esperança. (Peixoto: 2001, 98-100)
***
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15
|
ORFEU
REBELDE
Orfeu rebelde, canto
como sou:
Canto como
um possesso
Que na casca
do tempo, a canivete,
Gravasse
a fúria de cada
momento;
Canto, a ver se o meu canto
compromete
A eternidade no meu
sofrimento.
Outros, felizes,
sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz
assim, num desafio:
Que o céu
e a terra, pedras
conjugadas
Do moinho cruel que me
tritura,
Saibam
que ha gritos
como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo
que adivinha
a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como
quem usa
Os versos em
legitima defesa.
Canto, sem
perguntar a Musa
Se o canto
É de terror ou de beleza.
Orfeu Rebelde
(1958)
|
Linhas de leitura sobre o poema "Orfeu Rebelde", de Miguel Torga.
Após a leitura atenta,
analise o poema com
base nos
seguintes tópicos:
1)
Tema/assunto.
2)
Desenvolvimento do tema / momentos
em que
está estruturado.
3)
Oposição sujeito poético / os outros
poetas.
4)
Concepção da poesia defendida.
5)
A poesia
assume-se como uma arma
em legítima
defesa, de modo
que são
seguintes as marcas
de agressividade, revolta e rebeldia a nível do vocabulário:«rebelde»
(v.1), «possesso» (v. 2), «canivete» (v. 3), «fúria»
(v. 4), «compromete» (v. 5), «sofrimento» (v. 6), «desafio»
(v. 7), «cruel» (v. 10), «gritos» (v. 11), «nortadas»
(v. 11), «violências» (v. 12), «recusa» (v.
13), «defesa» (v. 16).
Note-te ainda
que a rebeldia
que perpassa todo
o discurso está realizada com notável mestria, donde se destacam:
a) os valores
do nível fónico:
-
aliteração do fonema /c/ ao longo
do poema conjugada
com a aliteração
do fonema /t/ =
-
os vários
transportes =
-
domínio do verso decassílabo =
b) a expressividade da adjectivação onde:
-
é sugestiva
a rebeldia, ex.:
-
e há também
o adjectivo irónico, ex.:
c) o valor dos verbos:
-
domínio do presente (canto,
sou, ergo) =
-
o presente do conjuntivo (sejam, saibam) =
-
o imperfeito
do conjuntivo (gravasse) =
d) a importância
das figuras de estilo
– a personificação casa-se com as metáforas e as imagens:
–
comparação:
«como um possesso» (v.2) =
«gritos como há nortadas» (v. 11) =
«canto como quem usa / os versos em legítima defesa»
(vv. 15-16) =
–
Personificação:
«que o céu e a terra, pedras
conjugadas/.../ saibam que há gritos como há nortadas» (vv. 9,11)=
«violências famintas de ternura»
(v. 12) =
–
Repetição: «canto» =
–
metáforas e imagens:
gravação na «casca do tempo» (v. 3) =
«rouxinóis»
(v. 7) =
«pedras conjugadas» (v. 9) =
«moinho cruel que me tritura»
(v. 10) =
6)
Metáforas da poesia.
7)
Estrutura formal.
8)
Explicação do título.
Em síntese: «Torga é simultaneamente […] o poeta da angústia e o poeta da esperança […]. Angústia provocada pela
ausência do absoluto,
ausência de Deus
ou do divino nos homens,
pelas mortes em
vida, pela
morte final»
Drama interior do sujeito
poético:
-
consciência da passagem inexorável
(implacável) do tempo
e tentativa da recusa, usando os versos «em legítima defesa»;
-
obstinação do sujeito poético, que
recusa a poesia lírica
romântica simbolizada pelos «rouxinóis»;
-
a imagem
órfica (do Orfeu que perdeu a sua amada
Eurídice) ao ligar-se a perda da vida exprime a atitude de sujeito poético perante
a poesia e a angústia
face à morte ou mesmo perante o amor feito «ternura».
Note-se as marcas
«presencistas» patentes na
superlativação do Eu, na emotividade da linguagem
e aguda consciência
da função do Poeta.
Quando se afirma «canto
como sou», reconhece-se a sinceridade presencista, porque
o homem e o poeta
não são
indissociáveis, cabendo à poesia revelar o Ser, ou seja, apresentar sincera e
autenticamente o homem.
(Veríssimo: 1999, 55; Guerra: 1999, 402; Pimenta:
2004., 172)
***
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|
DESCIDA
AOS INFERNOS
Desço
aos infernos, a descer
em mim.
Mas agora
o meu canto
não perfura
O coração da morte,
À procura
Da sombra
Dum amor perdido.
Agora
É o
repetido
Aceno
Do próprio abismo
Que me
seduz.
É ele, embriaguez
nocturna da vontade,
Que me
obriga a sair da claridade
E a caminhar sem luz.
Ergo a
voz e mergulho
Dentro do poço,
Neste moço heroísmo
Dos poetas,
Que enfrentam confiantes
O interdito
Guardado
por gigantes,
Cães vigilantes
Aos portões do mito.
Orfeu
Rebelde (1958)
|
O poeta procura descer ao mais fundo de si mesmo, sentindo «um
medo triste,
de vergonha e assombro»
(v. 30), em contraste
com o céu
que se reflecte, lá
do alto, «inútil
como a paz
que me
promete» (v. 33). Há assim uma catábase contínua ao procurar descer à
interioridade de si mesmo,
para de lá trazer à luz a poesia, o amor
e a esperança. Mas,
tal como
Orfeu em demanda
de Euridice, tudo exprime o desalento, a solidão, a tristeza indefinida,
o além. E, neste drama
íntimo, Torga afirma a sua rebeldia contra os limites
da sua condição
humana.
Note-se que,
na 3.ª estrofe, o medo,
a vergonha e o assombro
pelo que lhe é dado a observar no seu próprio íntimo
gelam-lhe «o sangue, no seu nascente»
(v. 31), onde ainda
se reflecte o céu, cuja
paz não
aceita.
Aqui o motivo
do efeito apaziguador e fascinante do canto
de Orfeu no Hades foi anulado, para dar
lugar ao vazio
do som, ao negativo
das sensações. (Mª Helena
da Rocha Pereira,
«Os mitos clássicos
em MT» in Colóquio,
nº 43.)
***
|
Miguel Torga (in JN) |
O drama da criação
poética
Embora esta temática
não seja recorrente
na poesia torguiana, parecem não restar dúvidas quanto
à sua inserção
em muitos
dos seus poemas.
Aliás, já
anteriormente se disse que, com
frequência, Torga se sente triste por não conseguir iluminar a sua poesia. Mas a sua reflexão é bem mais profunda e
é o próprio que
reconhece que "De quantos ofícios
há no mundo, o mais
belo e o mais
trágico é o de criar
arte. É ele o
único onde
um dia
não pode ser igual ao que se
passou. O artista tem a condenação e o dom de nunca poder automatizar a mão, o gosto,
os olhos, a enxada.
Quando deixa
de descobrir, de sofrer a
dúvida, de caminhar
na incerteza e no desespero
– está perdido", Diário I
(1941). Para Torga, a poesia
é um dom
inato que
compromete o homem integral
no dever de não
o trair, pois, ao
fazê-lo, pode trair o seu
semelhante. Torga acredita na literatura, na poesia
como emanadoras e reveladoras de uma ordem cósmica que
funciona como salvação terrena para o homem que
escolheu a perdição divina.
Para ele, o
acto poético é indissociável de um certo comportamento místico que
aproxima o homem dessa ordem cósmica em
que se integra a sua
animalidade.
A título exemplificativo, veja-se o poema
"Maceração" e relembre-se, neste
contexto, o mito
de Sísifo, rei de Corinto, temido pelas suas crueldades;
este, depois
de morrer, foi condenado a rolar
uma pedra até
ao cimo de um
monte. Quando
deste ponto a pedra
se aproximava, voltava a cair e Sísifo era obrigado a recomeçar. Em literatura, esta figura
mítica é usada para caracterizar
um trabalho
extenuante, que exige esforços sempre
continuados, um trabalho
sem fim
que tão
bem serve o dramatismo da criação poética
que Torga incute em
muitos dos seus
textos. (Peixoto: 2001, 100-101) Mas, diz ele,
no Diário XII (1977): «Escrever é um
acto ontológico».
***
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|
MACERAÇÃO
Pisa os meus versos,
Musa insatisfeita!
Nenhum deles
te merece.
São frutos acres que não
apetece,
Comer.
Falta-lhes génio, o sol
que amadurece
O que sabe nascer.
Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te
desfigura.
Nega esta rima impura
Que
responde de ouvido.
Denuncia estas sílabas
contadas,
Vestígios digitais do evadido
Que deixa atrás
de si as impressões
marcadas.
E corta-me de vez
as asas que
me deste.
Mandaste-me voar;
E eu tinha um corpo inteiro
a recusar
Esse ímpeto celeste.
Penas do Purgatório (1954)
|
Este é um
poema com
a seguinte estrutura
externa: três
estrofes desiguais
(uma sextilha, uma sétima
e uma quadra) e de metro
irregular. Esquema
rimático: abbcbc/deefgfg/hiih, logo, dois versos soltos e
os restantes emparelhados, cruzados e
interpolados.
- Qual o tema
do texto?
- Divida o poema em partes lógicas, pondo em
evidência que
o assunto se desenvolve de forma circular.
- O sujeito poético apostrofa
a Musa. Estaremos perante um
poeta romântico que
acredita na inspiração vinda
do alto ou
a palavra «Musa»
tem outro significado?
Justifique a sua resposta.
- O sujeito poético não gosta
do trabalho que
faz, não gosta
da sua poesia
porque esta não
atinge a perfeição que
julga dever ter.
Transcreva as palavras que revelam o seu
desalento.
- Complete a seguinte
análise:
5.1. A nível morfossintáctico, notamos que
- os verbos
no imperativo estão ao serviço da função
.......................................... da linguagem;
-
o predomínio da coordenação é justificado porque
o poema contém uma sequência de ..........................................;
-
de forma geral os adjectivos ..........................................e os nomes tédio e
nojo apontam a insatisfação do poeta.
5.2.
A nível
estilístico são de salientar
a expressividade das metáforas:
-
«frutos
acres» = ..........................................;
-
«Falta-lhes génio, o sol
amadurece» = ..........................................;
-
«estas sílabas
contadas, vestígios digitais
de evadido» = ..........................................;
-
«corta-me as asas
que me
deste» = ...........................................
(Guerra: 1999, 405-406)
***
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|
MUDEZ
Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta
à minha frente,
Tenho a memória cheia de poemas,
Tenho os versos que fiz,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não sei
De que palavra, síntese
ou imagem!
Desço dentro de mim, olho a paisagem,
Analiso o que
sou, penso o que
vejo,
E sempre o mesmo trágico
desejo
De dar outra
expressão ao que
foi dito!
Sempre a mesma vontade
de gritar,
Embora de antemão a duvidar
Da exactidão e força
desse grito.
Mudo, mesmo se falo,
e mudo ainda
Na voz dos outros, todo eu me afogo
Neste mar de silêncio, íntima
noite
Sem madrugada.
Silêncio de criança que
ficasse
Toda a vida criança
E nunca
conseguisse semelhança
Entre o pavor e pranto
que chorasse.
Orfeu Rebelde (1962)
|
Poema semelhante
a «Maceração» no que
diz respeito à apresentação
do drama da criação
poética, da dificuldade
de atingir a perfeição. Portanto, revolta
contra os limites
humanos.
O sujeito, confrontado com
o símbolo arquetípico da poesia ocidental,
a Ilíada, não se coíbe de focalizar o embaraço
da falta de inspiração,
relativizando a «memória» (v.3) dos versos feitos e
a «vontade de gritar»
(v. 12), a partir da dúvida
sobre a «exactidão e a força desse grito» (v. 14).
No processo de catábase ou
descida aos infernos
do ser, do pensar e do ver «dentro de mim» (v. 8), as imagens
desconfortantes da «mudez» e do «mar de silêncio»
(v.17), desaguando na metáfora da «íntima noite/ sem madrugada»
(vv. 17-18) ou da situação
deficiente da «criança
que ficasse / toda
a vida criança»
(vv. 19-20), perturba o leitor solidário com o
trágico desejo
de quem se dilacera com
o escrúpulo «de dar
outra expressão
ao que foi dito»
(v. 11). (in Para uma leitura
de sete poetas
contemporâneos, António Moniz, Ed. Presença, 1997, p.92)
Recursos estilísticos:
-
Conjunção
copulativa com valor adversativo
nos vv. 5 e 10 usada para
opor a grandeza
de uma obra como
a Ilíada ou a profundidade interior
do poeta com
a incapacidade do poeta
em abarcar
essas realidades através
da sua escrita.
-
Hipérbole no v. 5
que reforça a insatisfação.
-
Anáfora da expressão
«tenho» na 1ª estrofe acentua a angústia do poeta.
-
Enumeração gradativa no v.
7 dos objectos da procura responsáveis pela
sua inquietação.
-
Imagem e metáfora: «mar
de silêncio» e «noite
/ Sem madrugada»
para transmitir a mesma incapacidade
humana em
conseguir a palavra
certa sempre
que se quer.
***
Miguel Torga | Poesia
Chave de correção dos questionários
«S. LEONARDO DE GALAFURA» (Guerra:
1999, 398)
1.1. O barco
rabelo.
1.2. Viagem
através do Douro, donde contempla um espaço de rara beleza.
1.3. Ama
os valores terrestres.
2. Três
partes, correspondentes
a cada estrofe:
o santo navega devagar
em direcção à eternidade;
razão por
que vai devagar;
retorno à imagem
inicial da viagem
lenta em
direcção à eternidade.
3.1. Estrofes
irregulares (11, 9 e 7 versos); métrica
irregular (versos
de 2 a 22 sílabas); versos
soltos e rimados. Todos estes factores se conjugam para
dar uma ideia da irregularidade
do espaço observado.
3.2. Alternância
de sons abertos
e de sons fechados = alegria pelas coisas
terrestres e tristeza
por ter de
as deixar; aliterações:
/p/= viagem, / m/ = apelo
à terra...
3.3. Presente
do indicativo no seu
aspecto durativo = permanência,
lento desenrolar
da viagem;
conjugação
perifrástica = permanência, lento desenrolar da viagem.
3.4. Coordenação,
processo dominante
(só há uma oração
relativa = que
gasta no caminho)
= o processo da viagem,
lento e sequente.
3.5. Conjunto
das metáforas destacadas = a imagem do santo
navegando em direcção ao céu, sabendo já
que lá
não encontrará as belezas
terrenas.
4.1. O apego à terra.
4.2. Todos
as expressões intensificam esse apego numa
manifestação de telurismo.
«LIVRO DE HORAS» (Cardoso: 2003, 216)
1.1.Livro
de horas – livro
de orações
Tipo de discurso
utilizado: confessional.
Confissão a si próprio
– o Eu do poeta
impõe-se; confessa-se, diante de si próprio, «De ser assim como [é]». Ou seja, de ser «Homem». É, pois, o retrato contraditório do Eu
que aqui
se apresenta, o retrato de alguém para quem a liberdade
é já algo
adquirido: «me confesso
/ o dono das minhas
horas». É este,
sem dúvida,
um poema
de afirmação do humano, da condição humana,
mas a nível
de linguagem entra já
no domínio da religião.
"O Outro Livro de
Job é, com efeito,
a primeira obra
que corporiza em
toda a sua
grandeza o drama
fáustico de Torga. Ele reflecte, cm toda a plenitude,
a busca do homem
do seu próprio
ser – e este itinerário passa
por um
conflito aberro com
o Absoluto e com
os outros. Guiam-no neste itinerário os sentimentos
da liberdade e da culpabilidade, as duas
metades de si
mesmo que
se não adequam nem
ajustam. Segundo o princípio
da liberdade, a pessoa
está obrigada a fazer-se, a realizar a sua existência – tarefa
que depende única
e exclusivamente ao indivíduo,
sendo que para
isso lhe
está vedado partir de apoios
ou de modelos
estranhos". (Fernão de Magalhães
Gonçalves, Ser e Ler
Torga, pp. 52-53)
2.1. Predomina o presente do indicativo
que contribui para
conferir ao texto
toda a força,
evidência e vivacidade.
2.2. Todas as frases são do tipo declarativo à excepção da última,
que é exclamativa.
Os três primeiros versos
da primeira estrofe,
em que
o Eu se nos
apresenta como pecador
disposto à confissão;
os versos 4-36, em que o autor se nos
confessa dividido entre o "bom e o mau";
a última estrofe,
em que
se regressa à síntese
inicial do Eu
– note que há uma semelhança
entre o que
se diz na primeira parte
e o que se diz nesta última estrofe.
Na última estrofe,
o poeta assume-se, corajosameme, como um "eu'' que, embora dividido como
se confessou, permanece diante de si, autodesafiando-se "nesta deriva"
(que é a vida),
e em que,
apesar dos abismos
e das tempestades, não
acredita no naufrágio.
3.1. As vírgulas estão a isolar a palavra «pecador» que desempenha a função
sintáctica de aposto, caracterizando ou determinando melhor
o pronome antecendente «Eu».
3.2. Foneticamente, o termo «assim»
surge em rima
interna, harmonizando com «mim». Também funciona como
um deíctico,
reenviando para o momento
da escrita. Um
encontro entre
o eu que
escreve («Aqui ... eu
... me
confesso») e aquilo
que é escrito
(referenciado como «assim»),
espacialmente situado num «aqui»/«assim», que não tem qualquer sentido
fora do texto
em que
é produzido. O Eu assume claramente a autoria do texto/
da confissão. (cf. Veríssimo: 2003, 101)
4. Marcas
textuais ao serviço
de um estilo
confessional: abundância de utilização
da primeira pessoa
verbal, de pronomes
pessoais e possessivos
da primeira pessoa
(eu, me,
mim, minha,
minhas) e alguns
deícticos (aqui, diante,
desta, nesta, acima, abaixo) que
fazem convergir centripetamente toda
a problemática abordada.
5.1.
«Eu, pecador, me confesso / De ser assim...»
|
Dimensão positiva
|
Dimensão negativa
|
«o bom» (v. 4)
|
«o mau» (v. 4)
|
« o possesso de virtude teologais»
|
«e dos pecados mortais»
|
« o das facadas cegas e raivosas»
|
« o das ternuras
lúcidas e mansas»
|
« charco»
|
«luar de charco»
|
« corda do arco que
atira setas acima»
|
« e abaixo da minha altura»
|
Abel
|
Caim
|
« anjo caído do céu»
|
«monstro saído do buraco
mais fundo
da caverna»
|
«ORFEU REBELDE»
(Veríssimo: 1999, 55; Guerra: 1999, 402;
Acesso..., 172)
1) Tema/assunto: Rebelde,
o sujeito lírico
pretende gravar, através
do canto (poesia),
a fúria de cada
momento, afirmar
a sua rebeldia
face à invevitabilidade da morte.
2) Desenvolvimento
do tema / momentos
em que
está estruturado: três momentos correspondentes
às três estrofes:
Orfeu rebelde, os outros
e o Eu, bicho
instintivo.
3) Oposição
sujeito poético / os outros
poetas = rouxinóis = românticos.
O sujeito lírico não
pretende exprimir emoções
mas um
grito de revolta;
poesia romântica versus
poesia de revolta.
4) Concepção
da poesia defendida: poesia como arma de combate; poesia de desespero
humanista.
5) Marcas
de rebeldia, donde se destacam:
a) os valores
do nível fónico:
-
aliteração do fonema /c/ ao longo do poema conjugada com a
aliteração do fonema
/t/ = luta e rebeldia;
-
os vários
transportes = ritmo
agitado;
-
sugestão de luta;
-
domínio do verso decassílabo
= luta sem
tréguas.
b) a expressividade da adjectivação:
é sugestiva a rebeldia
(rebelde, cruel,
famintas, instintivo, legítima); há também
o adjectivo irónico: felizes.
c) o valor
dos verbos:
-
domínio do presente (canto, sou, ergo) = permanência
da luta;
-
o presente
do conjuntivo (sejam, saibam) = desdém;
-
o imperfeito
do conjuntivo (gravasse) = hipótese.
d) a importância
das figuras de estilo
– a personificação casa-se com as metáforas e as imagens:
–
comparação:
«como um possesso»
(v.2) = decisão completa;
fúria do seu
canto, desafio;
«gritos como há nortadas»
= violência da revolta,
comparação resultante da aproximação
da sua revolta
à revolta dos elementos
da natureza;
«canto como quem usa / os versos
em legítima
defesa» (vv. 15-16) = poema como legítima defesa.
–
Personificação:
«que o céu e a terra, pedras conjugadas/.../ saibam que
há gritos como
há nortadas» (vv. 9,11) = exprimir
a violência dos elementos
da natureza contra
o tempo;
«violências famintas
de ternura» = exprimir
a força e a necessidade
do amor;
–
Repetição: «canto» = exprimir a ideia que a sua arma é a poesia.
–
metáforas e imagens:
gravação na «casca do tempo» = a gravação
exprime a revolta contra
a passagem do tempo.
A imagem da «casca
do tempo» surge como
sinal da perenidade (duração) contraditoriamente efémera e aparente por ser apenas casca; a gravação
é «a canivete» (v. 3), para
que a própria
evolução da casca
torne mais duradoira e viva a sua revolta.
«rouxinóis» = românticos.
«pedras conjugadas» (v.
9) = união de todas as forças.
«moinho cruel que me tritura» (v. 10) = imagem
que evoca a passagem
do tempo não
apenas como
um moinho,
mas entende-a, também,
como agressiva
e dilacerante.
6) Metáforas
da poesia: «canto»
é a palavra chave
que denuncia a obsessão
do sujeito da enunciação:
ser poeta.
7) estrutura
formal: três
sextilhas de rima
branca, interpolada e emparelhada segundo o esquema:
abcdcd/efghgh/ijjljl. Variedade também na medida
dos versos: de 6 sílabas
a 12, predominando o verso decassílabo.
8) Título:
no mito de Orfeu, esta figura mitológica perdeu a sua
amada Eurídice e recorreu ao cântico como arma de revolta. Os versos
surgem aqui «em
legítima defesa»
do sujeito poético, que
se revolta contra
os limites de ser
humano, nomeadamente, contra a transitoriedade da vida
e a inexorabilidade (implacabilidade) do tempo.
«MACERAÇÃO» (Guerra: 1999, 405-406)
1. Tema:
o drama de criar
(o suplício de escrever).
2. Três
partes que
correspondem às três estrofes, sendo que
a estruturação do tema faz-se em forma circular:
pedido à Musa
para que
destrua os seus versos
(plano geral);
indicação das imperfeições
(plano particular);
retorno ao sentido
inicial (plano
geral).
3. O sujeito
poético apostrofa a Musa não porque
acredite na inspiração vinda
do alto mas
porque Musa
é no contexto do poema
sinónimo de perfeição. Assim
sendo, na expressão «Musa insatisfeita» há uma hipálage, pois que a insatisfação é do poeta.
4. O sujeito
poético não gosta
do trabalho que
faz, não gosta
da sua poesia
porque esta não
atinge a perfeição que
julga dever ter. Eis, então, as palavras que
revelam o seu desalento:
Pisa (v.1), insatisfeita
(v.1), frutos acres
(v.3), Falta-lhes génio (v.5), Cospe (v.7), Corta-me (v.14)...
5.1. A nível
morfossintáctico, note-se que:
-
os verbos
no imperativo estão ao serviço da função
apelativa da linguagem;
-
o predomínio
da coordenação é justificado porque o poema
contém uma sequência de apelos;
-
de forma
geral quer
os adjectivos (Musa)
insatisfeita, (frutos) acres, (rima) impura, (ímpeto)
celeste, (corpo)
inteiro e os nomes
tédio e nojo
apontam a insatisfação do poeta.
5.2. A nível
estilístico é de salientar a expressividade
das metáforas:
- «frutos
acres» = rudeza
dos versos;
- «Falta-lhes génio, o sol amadurece» = versos
irregulares;
- «estas sílabas contadas, vestígios
digitais de evadido» = poesia moderna,
irregular, transgressão
da lírica tradicional, e artificialismo;
- «corta-me as asas que me deste» = o poeta não cumpre a missão
para que foi
incumbido e por isso
não é digno
dela.
Numa autocrítica severa,
o sujeito desdenha dos seus
versos através
da metáfora dos «frutos
acres» (v.3), aos quais
faltou o «sol» do «génio» (v. 5). São, na sua óptica autodisplicente [de autodesprezo], uma desfiguração da musa,
«Em cada
imagem» (v. 8), na «rima
impura» (v. 9), nas «sílabas contadas» (v. 11), avaliadas como «vestígios
digitais do evadido / Que deixa atrás de si as impressões marcadas» (vv. 12-13). Por
isso o sujeito
desafia a Musa
a pisá-los , cuspindo de «tédio e nojo» (v. 7), e a cortar-lhe «as asas»
(v. 14) do voo poético, numa recusa de «corpo
inteiro» (v. 16) a «Esse
ímpeto celeste»
(v. 17) da inspiração. (in Para
uma leitura de sete
poetas contemporâneos,
António Moniz, Ed. Presença, 1997, p.92)