quinta-feira, 9 de julho de 2015

Avieiros, pescadores do Tejo


“Soubesse de outro ofício e bem lhe dava de abalar terra dentro à cata de trabalho. Porém, deixar o rio era coisa reparada. Quebrar tradições era traição ao seu povo.” (Alves Redol)






Pescador da Borda d' Água,
ao cimo d'água salgada;
passa fome, passa frio,
junto do seu camarada.
Vila Franca de Xira

Quem tem um homem do mar,
julga que tem algum duque:
tem um pastel de dez reis
c’uma pitada d’açucre.
Alcochete

Está nevoeiro no sol,
debaixo da proa deita fumo;
vai o ferro para o mar
e a caldeira para o lume.
Alcochete

O meu amor é do mar,
é do mar, é marinheiro;
se ele não fosse do mar,
não me ganhava dinheiro.
Alcochete

Vale mais um homem no mar,
sem botão no colarinho,
que valem trinta manatas
de bengala e chapéu fino.
Alcochete

Que linda maré que leva
o barco do meu irmão;
debaixo da proa tem
Senhora da Conceição.
Alcochete

O barqueiro leva a barca,
leva também a barquinha;
meu amor namora duas,
mas a fama é sempre minha.
Alcochete

Ó Senhora d'Atalaia,
atalaia dos pinheiros;
és mãe dos homens do mar,
madrinha dos carreteiros.
Alcochete

Adeus ó rua do Rato
e rua das Calçadinhas,
onde passa o meu amor
quando vai para as marinhas.
Alcochete

Ó loureiro, ó loureiro,
ó loureiro ramalhudo;
quem tem um amor barqueiro
tem passagem, passa tudo.
Chamusca

Ó senhor arrais do barco
pelo amor de Deus me leve;
as tranças do meu cabelo
servem de cordas de leme.
Chamusca

Quem tem um amor marujo,
pensa que tem algum duque;
é um pastel de tostão
c’uma pitada d’açucre.
Ereira

O meu amor é do mar,
anda a aprender a marujo;
s’inda me der na cabeça,
abalo com ele e fujo.
Palhota

O meu amor é do mar
e vai a Lisboa e vem;
Nossa Senhora mo guarde
das ondas que o lar lá tem.
Samora Correia

A sorte do marinheiro,
é uma verdade pura;
anda sempre a trabalhar
em cima da sepultura.
Samora Correia

Ó barqueiro arreia a vela,
ó barqueiro arreia o pano;
quem casa com mulher magra,
tem bacalhau todo o ano.
Vila Franca de Xira

Rapaz vê lá se descobres
num cantinho do mercado,
uma peixeira magrinha,
com o peixe perfumado.
Vila Franca de Xira

Uma gaivota voando,
no bico leva um letreiro,
com letras d’oiro que dizem:
meu amor é marinheiro.
Vila Franca de Xira

Lá vem o barquinho à vela,
lá vem a sardinha boa,
lá vem o meu amorzinho
assentadinho na proa.
Vila Franca de Xira

O meu amor é barqueiro,
tem a lancha presa no cais;
este ano é camarada,
para o ano é arrais.
Vila Franca de Xira

Já lá vai a embarcação,
toca não toca no cais;
é da minha obrigação
ajudar o meu arrais.
Vila Franca de Xira

No verão, cheio de calor,
muito pescador se passa:
lá vão uns para o melão,
outros ficam à fataça.
Palhota


PESCADORES VS CAMPINOS

Andas tola, andas vaidosa
por namorar um varino;
também eu ando vaidosa
por namorar um campino.
Vila Franca de Xira

PESCADORES
Vale mais um homem do mar
co'as mãos sujas d’alcatrão;
que valem trinta da terra
com as enxadas na mão.
Alcochete

Anda lá rapaz do mar,
ao leme dessa fragata;
manda lá o terreano
p’ra vinha sachar batata.
Alcochete

O meu amor é do mar,
é do mar e é varino,
e se não fosse do mar,
era do campo e campino.
Alhandra

Eu não quero ir ao campo
que lá faz muito calor;
eu não quero ser campina
que o meu bem é pescador.
Palhota

Eu hei de ir ao Alegrete
namorar uma varinha,
por que são flores viçosas,
não se encontram na campina.
Vila Franca de Xira

CAMPINOS
Homens do mar não são homens,
varinos homens não são;
onde chegam valadores,
abre a terra, treme o chão.
Vila Franca de Xira


Cancioneiro do Ribatejo, org. e prefácio de Alves Redol.
Vila Franca de Xira, Centro Bibliográfico, 1950


Obra integral disponível para leitura.



Há mais de cem anos, os avieiros, eternizados por Alves Redol, começaram a trocar o quezilento mar invernal de Vieira de Leiria pelo amável estuário do Tejo. Depois, trouxeram as famílias, e pelo rio ficaram.

“Eu não quero ir para o campo / que lá faz muito calor / eu não quero ser campina / que o meu bem é pescador." No seu Cancioneiro do Ribatejo, António Alves Redol pincela uma das rugas mais vincadas dos avieiros: o seu caráter reservado, isolado no rio, de costas para o vizinho mundo das lezírias e fechado aos camponeses que as habitam e trabalham. Esse lado recluso, que os leva a casar sempre dentro da própria comunidade, é uma das razões para o escritor neorrealista os apelidar de “ciganos do rio”, no livro Avieiros, publicado em 1942. Outra justificação, porventura mais forte, é o seu lado nómada ‑ os avieiros vieram de longe, de Vieira de Leiria, e durante muito tempo andavam de trás para a frente de barco às costas a fazer-lhes de casa.
O século XIX não foi um bom século para Vieira de Leiria. Começou logo mal, com o exército das invasões napoleónicas a saquear e arrasar a eito a vila piscatória, no seu caminho para Lisboa. O saldo só não foi pior porque a maioria da população fugiu antes para o pinhal de Leiria, levando consigo tudo o que conseguia carregar. Mesmo assim, nos anos seguintes, metade da população sucumbiu às epidemias, consequência da fome e de muitos terem encontrado as suas casas destruídas pelos franceses.
A arrasadora passagem das tropas inimigas tornou ainda mais difícil uma vida já de si duríssima. Os pescadores enfrentavam todos os anos invernos cruéis, de mar frio e bravo, em barcos demasiado pequenos e frágeis para encararem olhos nos olhos as descomunais ondas. Porém, ver os filhos a passar fome dá coragem ao mais poltrão dos homens. Muitas vezes, os pescadores da Vieira de Leiria arriscavam sair para o Atlântico debaixo de tempestade. Bastas vezes não regressavam. A alternativa era empregarem-se nas serrações, à jorna, mas o bom pescador enjoa longe do mar.
Até que, no final do século XIX, um deles aventurou-se a descer a costa até Lisboa e a entrar no Tejo. O pioneiro encontrou um mar dentro do rio - mas um mar de ondas suaves e peixe gordo. Palavra puxa palavra e o estuário foi-se enchendo de homens de Vieira de Leiria nos meses frios. No verão, continuavam a lançar a rede à sardinha, na terra natal; no inverno, faziam do Tejo casa, à cata de sável, enguia, robalo, lampreia, fataça. O povo que há séculos habitava as margens do rio imediatamente os batizou: avieiros, à conta da longínqua vila que lhes serviu de berço.


Duas bateiras com toldo à proa.

A bateira como abrigo.

Ao princípio, os homens vinham sozinhos, com o colorido barco a servir-lhes de casa e local de trabalho. A ré era a oficina, de onde lançavam as redes e guardavam o peixe. A barriga da embarcação fazia de cozinha, apetrechada com fogareiro a petróleo e um armário para guardar alguidares, comida e o material de costura, para consertar as redes. A proa empinada transmutava-se de quarto, separado da cozinha por uma taipa, chamada “emparedeira", que também servia para apoiar os pés no momento de dar uso ao remo. dormiam, embalados permanentemente pelo ondular das águas e mal protegidos da chuva por uma pobre e precária cobertura de lona. Nestes seis ou sete metros de comprimento por metro e meio de largura viviam os avieiros uma boa parte do ano.
Cinco meses parecem cinco anos quando se está sozinho. A temporada longe das mulheres e dos filhos alongava-se, cada vez mais penosa, e a saudade esmagava espíritos, mas o peixe deixava-se apanhar e no Tejo raramente se morria. Já com o século XX mais do que inaugurado, alguns avieiros começaram a trazer as famílias com eles e deixaram de regressar a Vieira de Leiria. Lentamente, os nómadas sedentarizaram-se, e passaram a ter como viagem maior as excursões até Lisboa para vender o pescado.
A grande migração aconteceu entre 1919 e a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Assentar raízes no concorrido rio, no entanto, não foi fácil. Incontáveis centenas de pescadores abarrotavam já as águas, e os avieiros nem sequer tinham sido os primeiros forasteiros a chegar. Era constante o choque com os varinos, naturais de Ovar, os murtoseiros, da Murtosa, e os ílhavos, de Ílhavo, que haviam descoberto o Tejo nos séculos XVIII e XIX. Também os homens e as mulheres dos campos olhavam com desconfiança para estas gentes de estranhos hábitos, que acampavam nas praias, para ficarem mais perto do peixe, às vezes erguendo casitas feitas de caniços, não ousavam dar dez passos terra adentro e se tratavam uns aos outros pelas mais estrambólicas alcunhas: o Diabo Coxo, o Boga, o Malho, o Tubarão, o Japão, o Picareta, o Cientista, o Póri, o Botas, o Cosminha...
A estabilidade e o generoso número de filhos com que os pescadores eram agraciados obrigaram-nos a procurar habitação mais condigna. Tábua a tábua, o rio ia sendo ladeado por barracos de madeira, iguais aos palheiros das praias de Vieira de Leiria mas assentes em estacas cravadas no leito ou nas margens, para escaparem às copiosas inundações e não se afastarem do barco, seu único sustento. É por esta altura, nos anos 20 e 30, que o Tejo ganha cor: ao invés da monotonia alva que rodeia o estuário, as casas de palafita dos avieiros são pintadas de vermelho, azul e verde.


No apogeu da migração de Vieira de Leiria, chegaram a "fundar-se" 80 lugarejos avieiros. Escaroupim, Palhota, Caneiras, Carrasqueira, Barreira da Bica, Lezirão, Muge, Valada, Carregado, Vila Franca de Xira, Alhandra, Póvoa de Santa Iria... Por todo o lado, quase até Santarém, assomavam pequenas aldeias berrantes, que ao longe pareciam flutuar nas águas. Habitações trôpegas e modestas – “pequenas, talvez para que as não vissem; tímidas, para que não as mandassem destruir", no dizer de Alves Redol - com cozinha, uma salinha e um ou dois minúsculos quartos. Por cima das camas, apetrechadas com singelos colchões de palha e velhas mantas, ficavam penduradas as redes. A entrada fazia-se por umas escadas que desciam para o rio.
Não eram só as casas a pintalgar o Tejo. Também os naturais de Vieira de Leiria se vestiam com roupas garridas. As mulheres envergavam blusas com pregas, saias de xadrez preto ou castanho e amarelo (ou vermelho, ou azul), casacos rematados por rendas, lenço na cabeça e um omnipresente avental - fosse no labor mais árduo, ajudando o marido a puxar as redes, fosse na festa mais catita. Os homens usavam calças de fazenda, sempre arregaçadas na bainha, e camisas de flanela aos quadrados, com um barrete preto ou uma boina vermelha.
Vasco Loubet
http://www.vascoloubet.eu/portfolio_page/rancho-ceifeiras/

Com o tempo, a comunidade abriu-se mais. Aqui e ali, um ou outro pescador oferecia-se aos campos, quando o peixe, a crescer de esperteza ou a mingar de tamanho, fintava as redes ou as atravessava sem mácula. Empurrados para fora do rio, desempregados e puxados pelas fábricas que lhes invadiram o espaço, os netos e os bisnetos dos avieiros largaram paulatinamente a vida no Tejo.
Hoje, pode dizer-se que o tempo dos avieiros já lá vai. A modernidade encarregou-se de os extinguir, pescador por pescador. Restam apenas algumas casas, abandonadas ou a servir de barracão, entretanto empalidecidas, desbotadas pelo sol e pela água, apoiadas em apodrecidas e débeis escoras de madeira. As poucas casitas originais que ainda se mantêm de pé estão agora entre as últimas habitações típicas de palafita da Europa. Em Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos, um antigo lar avieiro foi remodelado e convertido em museu.
A história dos pescadores que fizeram da aventura rotina, essa, não morrerá nunca. Alves Redol deixou-a contada no romance Avieiros, um dos pilares do neorrealismo português. O livro foi editado em 1942, mas começou a ser escrito na cabeça do vila-franquense quando ele era ainda uma criança: Alves Redol, que crescera ao lado dos filhos dos varinos, seus companheiros de escola e de brincadeiras, ficou certo dia embasbacado a olhar para o singular e rude desconhecido que viu entrar numa taberna, encher um garrafão de tinto e abalar sem uma palavra; um amigo disse-lhe que o homem era um avieiro, que vivia da apanha do sável, e a curiosidade transformou-se em obsessão por conhecer melhor aquele povo.
Três décadas depois deste episódio, e ao fim de quatro anos a tentar convencê-los, Alves Redol conseguiu que o deixassem viver com eles, na aldeia de Palhota, durante a época do sável, para os acompanhar nas pescarias, entrar-lhes na alma e imortalizar-lhes o legado. Com uma condição ‑ tinha de levar a mulher com ele, não fosse o escritor roubar-lhes mais do que a história.
“Ciganos do rio”, L.R./A.R.. Super Interessante nº 207, julho 2015
Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, do jornalista Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013)






Barcos de Portugal



sexta-feira, 3 de julho de 2015

Mário Viegas (1948-1996)

  
António Mário Lopes Pereira Viegas começou a sua carreira no TEC – Teatro Experimental de Cascais - após a interrupção do curso na Escola de Teatro do Conservatório Nacional. Actor, encenador e declamador fez do teatro português uma marca internacional. Um verdadeiro mestre da cultura em Portugal, Viegas adaptou e traduziu diversas obras de autores estrangeiros como o irlandês Samuel Beckett.

A sua atividade teatral irrequieta e irreverente como a sua vida que necessitava de uma constante liberdade criativa proporcionou, na sua diversidade, grandes criações artísticas.
Mário Jacques e Silva Heitor, Os actores na Toponímia de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal, 2001.



Mário Viegas declama a "Cantiga dos ais", Armindo Mendes de Carvalho


"O Teatro foi sempre a minha vida e a minha morte", Mário Viegas

     Nota biográfica

     António Mário Lopes Pereira Viegas nasceu em Santarém a 10 de Novembro de 1948 (e faleceu a 01 de Abril de 1996). Inicia-se no teatro amador no Circulo Cultural Scalabitano com 17 anos onde representa Trágico á força de Anton Tchekhov.
     Torna-se aluno do curso de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde iniciou o seu percurso no teatro académico ao mesmo tempo que frequentava aulas noturnas no Conservatório Nacional de Teatro, também, em Lisboa. A sua carreira é finalmente impulsionada em Julho de 1966 com a peça A Maluquinha de Arroios no Teatro Experimental de Cascais (TEC), texto de André Brun com encenação de Carlos Avilez 10. Por exercer uma atividade que lhe era negada por lei enquanto estudante, Viegas foi expulso do conservatório e “chumbou” o segundo ano da faculdade em 1968.
     A sua estreia como ator profissional considera-se ter começado na TEC em 1968 com a peça O Comissário de Policia, com texto de Gervásio Lobato, e encenação de Avilez, onde Viegas participou como figurante, com apenas 20 anos. (Jacques e Heitor 2001:135)
     Ingressou na Faculdade de Letras da Universidade do Porto para dar continuação a sua formação em História, local onde participou em diversas atividades culturais e artísticas do Teatro universitário do Porto, e foi de novo chamado ao TEC onde foi abordado pela PIDE e enviado para cumprir serviço militar, fase que descreve como uma fase marcante da sua vida pessoal e artística, em que esteve impedido de atuar em publico por três anos « (apesar de atuar às escondidas)».
     Afirma ainda que contudo esta fase:
[…] deu-me uma certa energia e uma certa disciplina, que afinal eu tenho – porque se não fosse assim eu não aguentava estar a fazer quatro peças ao mesmo tempo. (Mário Viegas, Entrevista de Viriato Telles, in Auto-Photo Biografia (não autorizada), pp. 167.)
É como declamador que o seu nome começa a ser bastante conhecido, rompendo com as tradições de João Villaret e impondo-se como o grande diseur de poesia em Portugal nos anos 70. (Ramos 1989:408) Neste período grava quatro discos, participa no programa televisivo Disco e Daquilo (1973/74) e representa a peça Oh Papá, Pobre Papá, a Mamã Pendurou-te no Armário e Eu Estou tão Triste, texto de Artur Kopit e encenação de João Lourenço na Casa da Comédia em 1973.
Em 1974 funda o Grupo de Teatro Feira da Ladra, traduzindo e trabalhando na peça Eva Péron de Copi que sofre várias repressões por parte da Embaixada da Argentina e nunca chega a ser estreada.
Em 1975 estreia-se no cinema e 1976 na Rádio como declamador e em folhetins.
Neste ano torna-se ainda coautor e intérprete da série televisiva Ninguém (com Artur Semedo) e da série infantil Peço a palavra.
Para complementar a sua formação artística Mário Viegas participou em 1977 no Curso de Atores e Dramaturgia de Augusto Boal e começa a sua carreira na Barraca, da qual foi um elemento fundador.
Em 1978 inicia na RDP um programa semanal de divulgação de poesia Portuguesa, Palavras Ditas que continua ate 1982, e que é também editado como uma série televisiva de 13 episódios. Em conversa com a Professora Vera San Payo e João Lourenço é-nos dito:
[…] o Villaret criou um estilo de dizer poesia, mas o Villaret era o Villaret a dizer poemas […] e ele ficava bem a dizer aquele estilo […] mas ficava mal nos outros […] nos que imitam Villaret […].
[…] fez o programa Palavras ditas para a televisão e era uma maravilha […], corria Portugal com os poetas […] em sítios […] com clima muito pós 25 de Abril, quase comícios […] e aparecia a dizer poemas e as pessoas pensavam que os poemas eram dele […] ele chamava tanto a si os poemas, ele dizia-os de uma forma tão pessoal, tão pessoal, que ele era um poeta […] (Conversa com Vera San Payo e João Lourenço - Apêndice II)
Viegas era sem sombra de dúvida um homem «[…] muito ligado à palavra […] gostava que os textos tivessem palavras […] palavras muito significativas ele gostava muito de as dizer com tudo o que ele achava que elas tinham para dizer […]» (Apêndice II)
Ao longo dos anos 80 destacam-se a fundação do Novo Grupo, sediado no Teatro Aberto, onde interpretou várias obras (ver Apêndice I) e encena o espetáculo Confissões numa Esplanada de Verão (que incluía as peças Trágico á força de Tchekhov, A mais Forte de August Strindberg, O Homem da Flor na Boca de Pirandello e A Última Gravação de Beckett). Concebe e encena ainda O Esfinge Gorda, colagem de textos de Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e José de Araújo).
Em 1985 assume a direção artística do Teatro Experimental do Porto (TEP), onde encena e participa como ator em diversos espetáculos. (ver Apêndice I)
A sua atividade teatral irrequieta e irreverente como a sua vida que necessitava de uma constante liberdade criativa proporcionou, na sua diversidade, grandes criações artísticas.
Mário Jacques e Silva Heitor in Os actores na Toponímia de Lisboa, pp. 135 Em 1988 deixa o TEP para fundar a Companhia Teatral do Chiado (CTC) que «[…] nasceu da ideia de fazer uma companhiazinha com meia dúzia de tarecos e sem dinheiro […]» (Viegas 2003:165), algo que ainda hoje é ouvido da boca dos atores da companhia que se referem à mesma como “a Companhia Teatral do Chiado reduzida”; Viegas investiu na companhia recorrendo a fundos próprios.
Fundada por Mário Viegas, Juvenal Garcês e Eduardo Firmino, a companhia estreou-se em 1991 com a apresentação com quatro espetáculos. Eram eles A Birra do Morto; 3 Atos de Beckett; O Cantinho de Maria e Mário Gin Tónico Volta a Atacar. Napeça A birra do morto, Viegas participou como ator, encenador, diretor artístico e produtor. Este texto de Vicente Sanches já tinha sido encenado por si no TEP em 1986.(foto do programa no Anexo III)

  


Companhia Teatral do Chiado (CTC)

O que antes era quase uma arrecadação do Teatro Municipal S. Luiz tornou-se rapidamente a sala-estúdio - e única sala até hoje - da Companhia Teatral do Chiado.
Oferecida pela Câmara municipal de Lisboa a sala era pobre em condições; no entanto o público suportava essa falta de condições em prol do teatro que Viegas lhes conseguia oferecer; um teatro onde predominava o ator e a palavra, numa enorme simplicidade.
Os espetáculos eram simples também na sua estética. Com o dinheiro atribuído pela Secretaria de Estado da Cultura para a realização de um único espetáculo, Viegas levou à cena quatro espetáculos.
Mas nem essa dificuldade monetária põe de parte a atração do público pela companhia ou pelos seus membros. Os espetáculos esgotam, não existem lugares vazios na plateia e rapidamente se espalha a palavra de que a Companhia Teatral do Chiado tem uma nova obra em cena e que deve ser vista. Amigo passa a palavra a amigo – porque não existe melhor publicidade do que a palavra, que precisa apenas de um começo e, logo, o fio condutor se dividiu em múltiplas linhas de contacto – e é, novamente, sala cheia. Mário Viegas chamava-lhe «um teatro pobre no bom sentido da palavra. Sem meios, mas com toda a sinceridade» e era isso que o público procurava nesta companhia e em Viegas – um teatro e atores sinceros que lhes oferecessem algo diferente das superproduções de outros grupos. Não existia uma explicação estética para os cenários inexistentes ou para os projetores de poucas cores. «[…] nós temos meia dúzia de projetores, e a maior parte dos que temos foram roubados. […] Roubei mesmo, de roubar, em vários teatros onde fui» diz Viegas em entrevista a Ana Maria Ribeiro «[…] parece que a falta de dinheiro é incentivo ao talento, mas não.» (Viegas 2003:197)
Ainda hoje, tantos anos após a criação desta companhia, o estilo – se é o que podemos chamar assim – mantem-se o mesmo. Espetáculos como Broadway Baby, As obras completas de William Shakespeare em 90 minutos ou O gato contam todas com acessórios simples, facilmente removíveis e focam-se no ator e no que este traz para o palco que nada tem do tamanho ou maquinaria dos teatros nacionais mas, ao mesmo tempo, nada perde por isso.
O humor de Mário Viegas transmitiu passa por conceitos diversificados do cómico: há grandes diferenças entre o humor farsesco de Vicente Sanches, inserido no contexto Português, e o humor trágico Beckett. (Viegas 2003:151)
[…] Para ele a arte não e apenas um processo de realização, uma afirmação ética e expressão pessoal de criatividade […] O público existe, não como um conjunto de espectadores, mais ou menos interessantes, escondidos na sombra; […] o público existe como um grupo de pessoas com quem estabelece comunicação no sentido da palavra, como recetor e emissor. (Mário Viegas, Entrevista de João Porto para Jornal de Letras, artes e ideiasin Auto-Photo Biografia (não autorizada), pp. 151.)
Em homenagem ao ator e encenador, a Companhia Teatral do Chiado é hoje em dia o Teatro Estúdio Mário Viegas.





O Teatro na Política

A 17 de Agosto de 1993, Mário Viegas escreveu um texto, que publicou, em que explicava a criação do seu último espetáculo Enquanto se está à espera de Godot.
Afirma que a sua conceção durou seis meses «de forçado silêncio, de enormes sofrimentos» da companhia. Claramente desiludido pelo rumo do teatro em Portugal Viegas torna a referir este texto no final deste mesmo espetáculo (Viegas 2003:190)
Poderíamos, talvez dizer que, se não fosse pela sua participação ativa na vida politica o humor de Viegas, a sua visão, o seu trabalho em palco tanto como encenador e ator e, até mesmo, a sua escolha de repertório e traduções não teriam sido os mesmos. Viegas “sustentou” a CTC com baixos subsídios do estado e já sabia que seria assim.
Eu nem concorri aos subsídios da Secretaria de Estado da Cultura porque disse tão mal do dr. Santana Lopes e da sua política que achei, por coerência e por dignidade, que não devia pedir dinheiro. O dinheiro não é dele, é de todos nós que pagamos os impostos […]
Mário Viegas, Entrevista de Ana Maria Ribeiro,
 in Auto-Photo Biografia (não autorizada), pp. 197

A 06 de Setembro de 1995 baseia-se no Manifesto Anti-Dantas para criticar o Primeiro-ministro em funções Cavaco Silva num texto a que chamou Manifesto Anti-Cavaco e que apresentou no S. Luiz. Viegas participou em diversos comícios, e viveu em plenitude o espírito pós 25 de Abril.

http://marioviegasparaquasetodos.blogspot.pt/2012/10/manifesto-anti-cavaco.html

No mesmo ano, candidatou-se a deputado, como independente nas listas da União Democrática Popular, e posteriormente à Presidência da República Portuguesa (também apoiado pela UDP), adotando o slogan “O sonho ao poder”, e procurou apoio no meio universitário lisboeta.
Adota como lemas de campanha a frase de Eduardo de Filippo “os atores vivem a sério no palco, o que os outros na vida representam mal”.
Os seus slogans de campanha possuíam também eles um certo toque teatral: “Viegas amigo! O Mário está contigo!!”; “Mário só há um! O Viegas e mais nenhum!” e “O Mário que se lixe! O Viegas é que é fixe!”

http://marioviegasparaquasetodos.blogspot.pt/2012/07/nesta-patria-onde-terra-acaba-e-o-mario.html


«CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA - O monólogo mais feroz e alucinado feito entre nós»
http://marioviegasparaquasetodos.blogspot.pt/2013/02/mario-viegas-o-mal-amado.html




Ligação a Beckett

A 18 de Abril de 1959 Ribeirinho levou à cena, no Teatro da Trindade a peça À espera de Godot de Samuel Beckett e foi através desta encenação que o dramaturgo Irlandês chegou a Portugal.
[…]
Não é difícil perceber que existia uma ligação entre Mário Viegas e Samuel Beckett. Não só por este se tratar do seu autor preferido mas também pela personalidade deste (ver Capítulo 2).
Encontrava nos trabalhos de Beckett também, «[…] talvez […] uma certa poesia, algo não muito concreto mas universal; as pessoas não percebem, sentem […]»; o facto deste não ser «[…] um autor muito realista; ter assim uma escrita enigmática […] (Apêndice II) e o reduzido número de personagens eram fatores muito apelativo nos trabalhos de Beckett, uma vez que permitiam a Viegas uma maior liberdade para moldar e estruturar o texto e os seus intervenientes à sua maneira.
[…] as coisas que ele gostava, que eram muito claras, […] o Beckett e os poetas […] gostava e gostava muito […] e queria muito partilhar também com os outros. (Conversa com Vera San Payo e João Lourenço - Apêndice II)

Numa nota mais pessoal

Mário Viegas era caracterizado por aqueles que o conheciam melhor de diversas maneiras.
Viriato Teles descreve a vida de Viegas como:
[…] um corrupio de cenas e emoções, poemas e paixões, amigos e bebedeiras. Poucos atores conseguem aguentar um ritmo de trabalho tão intenso como este Mário Viegas, mas menos ainda são capazes de que a essa intensidade corresponda uma tão grande dose de prazer. (in Viegas 2003:165)

Cristina Peres em 1993, em crónica a Mário Viegas (Viegas 2003:195) referia-se ao ator como «um grande encadeador de palavras, às quais vem dedicando a vida.»
João Lourenço (Apêndice II) descreve Mário Viegas como sendo muito inteligente, muito culto e bem preparado, mas nada humilde.
A sua irmã, Hélia Viegas, em entrevista ao seminário regional O Mirante descrevia-o como uma pessoa excecional, desde cedo muito dotado de um espírito muito crítico.
Era uma pessoa espetacular, com uma auto-disciplina rigorosa que exigia muito de si. Na família era uma pessoa observadora, calada, com muita graça. Tinha uma linha satírica e de crítica social que já vinha do meu pai e do meu bisavô Francisco José Pereira. Nasceu com eles. Em casa era uma pessoa normal, que gostava de estar em família, sobretudo nos últimos 20 anos.
Após a minha conversa com Vera San Payo de Lemos e João Lourenço, fiquei a conhecer um Mário Viegas irreverente, curioso e cheio de vida. Estar com ele significava espera o inesperado e o mesmo se pode dizer do seu trabalho.
As interpretações funcionavam com ele muito bem, sempre. Mas havia noites em que ele era genial. (…) Fazia umas coisas que nós ficávamos de boca aberta. O que ele conseguia tirar da personagem e transmitir ao público. Ele era sempre um bocadinho diferente não é? Mas havia noites espantosas não é? Eu lembro-me de o ver… o que este homem fez. Ele não era possível de fazer igual. De vez em quando o público tinha esse prémio, de quem o assistia, de ver, de vez em quando, qualquer coisa genial. (João Lourenço - Apêndice II)
A sua personalidade levava-o a actos que marcavam qualquer um. Desde o roubo – da ideia da transgressão, do “contra” – até ao comer as folhas após decorar as falas da peça. O seu lado crítico era integrado em quase tudo o que fazia. Vimos nos capítulos anteriores algumas das suas “peças políticas” como Manifesto Anti-Cavaco ou Europa não! Portugal nunca! e podemos ainda acrescentar uma crónica ao Diário de Notícias intitulada Retratos do público feito a partir da bilheteira onde Viegas fazia uma analise do público baseando-se nas perguntas feitas à bilheteira sobre o espetáculo.
(…) ele entrevistou a bilheteira que era a D. Emília e então ela que escrevesse um catálogo de perguntas, uma lista de perguntas das pessoas que telefonavam para lá. “Tem desconto? Quanto tempo dura? É chato? Tem catálogo? É drama?” depois ele a partir dessas perguntas fazia um retrato do público. Ele era um poeta muito bem visto por isso também tinha esse pensamento sobre o teatro e sobre a sociedade. Tinha esse lado crítico contra a burguesia, contra as pessoas instaladas, contra o sistema. (Vera San Payo de Lemos -Apêndice II)
Viveu a vida a alta velocidade e com um gosto invejado por muitos. Fez teatro pela arte e não pelo dinheiro e nunca se conformou com a visão dos outros, mantendo sempre firme a sua posição em relação à sociedade e à política. Recusava-se a traduzir as obras mas tinha sempre uma opinião sobre a tradução dos outros e, seja em que palco estivesse, deixava sempre a sua marca.
João Lourenço: Mas era muito inteligente, muito vivo. Muito engraçado.
Vera San Payo de Lemos: Faz muita, muita falta. (Apêndice II)




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quinta-feira, 2 de julho de 2015

A despedida

Paula Rego, The Cadet and his Sister [O cadete e a irmã], 1988.
Acrílico em papel sobre tela, 213.4x213.4

The Cadet and his Sister aborda o tema da despedida, mostrando um cadete vestido com o uniforme do Colégio Militar, de partida para o combate, que se despede da irmã enquanto ela se ajoelha e ata os sapatos.

O tema da despedida remete para um importante acontecimento na vida pessoal da pintora portuguesa, porque, em 1988, Victor Willing, marido de Paula Rego, faleceu vítima de esclerose múltipla.

Nesse mesmo ano são de assinalar obras como A Partida, A Família e Dança.




Paula Rego. The bullfighter's Godmother, 1990-91.
 Acrylic on paper on canvas, 122 x 152.4 cm.


[…] In an interview with John Tusa, Paula Rego explains that 'painting something about Vic' (Victor Willing, her husband) was the motivation behind the Girl and Dog series. Asked whether the paintings had a reference to his illness and death from multiple sclerosis in 1988, she replied: 'Yes. It was so embarrassing because it's such a personal thing. You can't do it directly, you have to find a way around it' (Tusa, 2001, 10). This statement, illuminated by a later remark in the same interview ('my work is about revenge, always, always'), brings us back in a neat circle to the impetus to do harm to those one loves most, quoted in the opening remarks to this book. Be that as it may, in Paula Rego, in the end, and to quote Griselda Pollock. 'biography can never be a substitute for history' (Pollock, 1999, 107), and what may begin as a motif rooted in personal experience is quickly amplified into a wider political concern, here that of a more disseminated gender enmity. The weakened dog, in need of nursing but in peril of being put down instead, may be generic man's but is clearly not woman's best friend. It becomes 'a way of saying the unsayable' (Greer, 1988, 33); a displaced object of transference and the target of an aggression whose modus operandi is the simulacrum of a variety of stereotypical female nurturing roles, maternal, Wifely, Sisterly or filial. Thus the acts of nursing, feeding and shaving are transmuted into preludes to murder. The same process would find a more literal translation in paintings later on in that decade, so that in retrospect, the dogs in the Girl and Dog series are only slightly enigmatic alter egos of a gallery of castrated monkeys (Wife Curs Off Red Monkey's Tail, figure 26), emasculated wolves (Two Girls and a Dog, plate 3) and, more blatantly, eviscerated canine protagonists (Amélia's Dream, plate 13). Together, they are the chorus line in a performance that ends in bloodshed closer to home, within the artist's own species and within everyone's symbolic family, in images such as The Bullfighter's Godmother (figure 30), The Cadet and His Sister (plate 9), The Family (plate 10) and The Policeman's Daughter (figure 32).
Throughout her painting career Paula Rego has returned with some insistence to the issue of cross-dressing, drag or disguises of various natures: the men in women's clothing in The Maids (plate 1), The Company of Women (figure 34), and Mother (plate 12), or the female figure in soldier's fatigues in The Interrogator's Garden (figure 10).2
And While in The Maids the supposedly female murder victim is replaced by a man, in the Girl and Dog series, painted between 1986 and 1987, the man in his turn is substituted by a dog. Paula Rego has stated in the past that in her view dogs are noble, vital and vigorous Creatures, and that to reach their status is fortunate (interview with Judith Collins, 1997, 125). The caveat to this statement, typically devious on the part of this artist, is that she was referring to a series of paintings called Dog Women (Dog Woman, figure 11), painted much later, in 1994.
In these works, indeed, the Dog Women in question are vigorous, athletic, but also defiant, irreverent and even threatening. This is clearly not the case with the male dogs of the earlier Girl and Dog series (plates 2—8, figures 14—16, 19, 21—22), which, as Ruth Rosengarten has observed, are passive, docile, sickly or downright invalid (Rosengarten, 1997, 68). And elsewhere the artist
has commented that in her view the dog is the animal that most closely resembles man, in the same breath reminiscing with perilous frankness about a dog she owned as a child, which was very small, whom she didn't like very much and which 'had suicidal tendencies, and used to jump out of high windows' (Rodrigues da Silva, 1998, 9). Did he jump or Was he pushed?
In this earlier Girl and Dog series, the dog cast as the avatar of the man, whose best friend traditionally he is, is clearly imperilled at the hands of a series of perfidious little girls, who variously handle and manhandle (or womanhandle) it, pin it down, feed it, shave it and taunt it, sexually or otherwise. The idealised Portuguese woman of the Salazarista vision may have been the selfless wife and mother, but these little girls, the mothers of future Rego women, whose viciousness to dogs (Amélia's Dream, plate 13) and men alike (The Family, plate 10) leaves little to the imagination, are the preoccupying antithesis of that ideal.
The dog is proverbially associated with faithful obedience to its master, a trait which may be carried to abject lengths. In traditional iconography this animal, ironically in view of the gender antagonism explicit in the Rego pictures, is often the symbol of a good marriage (Becker, 1994, 84-5). In portraiture, for example, if sitting at the feet of a woman, or in her lap, it signifies marital fidelity, or in the case of a widow, faithfulness to her husband's memory (Hall, 105). If Paula Rego is drawing upon these allusions, however, one is tempted to her gesture as ironic, When deployed, as it is here, in a series of paintings where the nurturing/wifely/maternal roles contain a level of ambiguity that easily translates into murderous intent. […]


A Dog´s life” in Paula Rego’s Map of Memory: National and Sexual Politics, Maria Manuel Lisboa. UK, Aldershot and USA, Burlington: Ashgate (2003).



AS MENINAS / PAULA REGO; TEXTO AGUSTINA BESSA-LUÍS
Lisboa, Guerra e Paz, 2001. Coleção três sinais.