quinta-feira, 19 de setembro de 2013

CANTIGA DE AMIGO (Adriano Correia de Oliveira)


 
         
           
CANTIGA DE AMIGO


Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar:

Que ao que levou meu amigo
Há de a noite encarcerar
Dentro de fel e vinagre
Sua boca há de fechar.

Com sete chaves de treva
E fechaduras de neve
Que ao que levou meu amigo
Há de a febre devorar.

Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar:

Sobre a parede mais fria
Suas tripas há de o dia
Pendurar em argolas de veneno
Sua carne há de queimar.

Com carvões de acetileno
Mai-lo sangue que há de arder
Que ao que levou meu amigo
Há de a noite decepar
Há de o dia ver morrer.

Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar:

Sobre a parede mais fria
Suas tripas há de o dia
Pendurar em argolas de veneno
Sua carne há de queimar
Com carvões de acetileno.

Se sabedes novas do meu amigo
É que venho perguntar.
            
Adriano Correia de Oliveira, Gente de aqui e de agora (álbum musical), 1971




            
Através da recuperação e glosa do verso “se sabedes novas do meu amigo”Adriano Correia de Oliveira entra num jogo intertextual com a cantiga de amigo Ai flores, ai flores do verde pino”, do rei-trovador D. Dinis.

Repare-se no recurso a alguns processos formais próprios da poesia trovadoresca medieval, tais como: o verso curto, uso de arcaísmos (“sabedes”,“Mai-lo”); o refrão composto apenas por um dístico; o paralelismo estrutural com recurso à transposição de alguns versos entre estrofes (alteração da ordem). É possível também reconhecer ecos intertextuais do romanceiro popular português, a propósito do uso recorrente da construção com o verbo havercomo auxiliar, seguido da preposição de e de um verbo no infinitivo:


“Dentro de fel e vinagre
Sua boca há de fechar.”


“Pendurar em argolas de veneno
Sua carne há de queimar.”
            


(“Cantiga de Amigo”, A. C. de Oliveira)


A mesa donde comeres,
logo se há de escachar;
e a cama donde dormires,
em fogo s’há de abrasar.”
            


(romance tradicional “Floresvento”)
           
Detetam-se também algumas coincidências temáticas com o cancioneiro de amigo: o uso do distintivo de género quer no título quer no primeiro verso (“amigo”); o tema da separação e espera ansiosa por parte da amiga; a intuição da figura do mensageiro a quem a amiga transmite os seus recados e de quem espera receber notícias.
Aliadas a estas marcas trovadorescas, encontramos a mensagem ideológica deAdriano Correia de Oliveira, através da crítica e denúncia da repressão do regime que atua pela noite (alusão metafórica do próprio regime e da PIDE) por meio de detenções (“encarcerar”, “Com sete chaves de treva / E fechaduras de neve”, “parede mais fria”, “argolas”, “carvões de acetileno”, “decepar”, “queimar”).
Deste modo, Adriano Correia de Oliveira, à semelhança do que faz, por exemplo,Manuel Alegre no poema Como ouvi Linda cantar por seu amigo José”, utiliza o motivo frequente do cancioneiro de amigo para adaptá-lo à situação político-social de Portugal na época em que foi redigido o texto, intervindo para denunciar e expor as atrocidades perpetradas por uma ditadura desumana e desumanizante.
             
           
Bibliografia / sugestões de leitura:
           
Cantigas medievais galego-portuguesas – projeto Litteraa presente base de dados disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais).



Un Chant Novel: A inspiração (neo)trovadoresca na poética de Jorge de Sena,Sílvia Marisa dos Santos Almeida CunhaUniversidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008.


Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/19/gente.de.aqui.e.de.agora-.aspx]

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

CRÓNICA DE ABRIL (SEGUNDO FERNÃO LOPES)


  


                
CRÓNICA DE ABRIL
(Segundo Fernão Lopes)

A rosa a espada o Tempo a lua cheia
entre Abril e Abril memória e ato
este oculto invisível coração.
E a trote dos cavalos os blindados
(quem me acorda no meio do meu sono?)
«Lisboa está tomada». A rosa e a espada.
Subitamente às três da madrugada.

Andando o Povo levantado andando
Álvaro Pais de rua em rua: «
Acudam
ao Mestre cá ele é filho d
El-rei. D.
Pedro
». Entre Abril e Abril. Memória e ato.
Verás florir as armas: lua cheia.

Saiu de Santarém o Capitão
já o Mestre matou o Conde Andeiro
e Álvaro Pais nas ruas cavalgando:
Matam o Mestre nos Paços da Rainha.

E o microfone às três e tal. E as gentes
que isto ouviram saíram pelas ruas
a ver que coisa era. E começando
a falar uns com outros começavam
a tomar armas. 
Aqui Posto de
Comando
. E soavam vozes de arruído
pela cidade. E assim como viúva
que rei não tinha se moveram todos
com mão armada. E Álvaro Pais gritando:

Acudamos ao Mestre meus amigos
Acudamos que o matam porquê.


E o rouxinol cantou. Ouvi dizer
que na torre soaram badaladas.
O doce cheiro a terra. O respirar
da amada. «E sobre cada povo (Nietzche)
está suspensa uma tábua de valores».
Verás florir o Tempo. A rosa e a espada.
Nel mezzo del camin di nostra vita.
Subitamente às três da madrugada.

E começava a gente de juntar-se
e tanta que era estranha de se ver.
Não cabiam nas ruas principais
cada um desejando ser primeiro
e todos feitos d
um só coração.

Não sei se a História tem um fio se
não tem. Mas já de Santarém partiu
o Capitão. De negro vem vestido
em cima da Chaimite. Ouves? É o trote
das lagartas. Cavalos e cavalos.

O exército da noite e seus blindados.
Ó com quanto cuidado e diligência
escrever verdade sem outra mistura.

Andando o Povo levantando andando
um Major aos seus homens perguntando:
Adere ou não adere? É só. Mais nada.
E o segundo-sargento perfilando-se:
Há vinte anos que espero este momento.

Verás florir o Tempo. E as armas de-
sabrochadas: às três da madrugada.

Soem às vezes altos feitos ter
começo por pessoas cujo azo
nenhum povo podia imaginar.
E pois assim aveio que em Lisboa
um cidadão chamado Álvaro Pais:

Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
Mas isto já ninguém o queria crer.

Continuidade. Descontinuidade.
E o que é rutura? E a História? Um caos de acasos.
Kairos (dizem os gregos). Conjunturas
favoráveis.
                     Verás florir as armas.

E já o Capitão entra na Praça
andando o Povo levantado andando
apoiando a coluna quando avança
para cercar o Carmo às doze e trinta.

Traziam uns carqueja e outros lenha
alguns pediam escadas e bradavam
que viesse lume para porem fogo
e queimarem o traidor e a aleivosa.

E em tudo isto era o tumulto assim
tão grande que uns aos outros não se ouviam
e não determinavam coisa alguma.

E o trote dos cavalos os blindados.
(Quem te acorda no meio do teu sono?)
Verás florir o Tempo: rosa e espada.
Subitamente às três da madrugada.

De cortinas corridas está o Carmo.
Da torre da Chaimite uma rajada
saltam vidros e cal da frontaria
e o tempo vai correndo sem resposta.

E não parava gente de juntar-se.

Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?
De cima não faltava quem gritasse
que o Mestre estava vivo e o Conde morto.
Se está vivo mostrai-o e vê-lo-emos.

E a gente não parava de juntar-se.
Quem fechou estas portas? perguntavam.

E já o blindado toma posição.
O Capitão olha o relógio e conta
e antes que diga três irrompem vivas.

Verás florir o Tempo: espada e rosa.

Já saiu a cavalo Álvaro Pais
já o Mestre matou o Conde Andeiro
está caído no Paço trespassado
ó Lisboa prezada venham ver
o Capitão em cima do blindado
Arraial Arraial. E então o Mestre
assomado à varanda a todos diz:

Amigos sossegai: estou vivo e são.
E o rouxinol cantou. Olhai as armas
desabrochadas. Cravo a cravo (ouvi
dizer). Andando o Povo levantado.

E não vereis na crónica senão
(sem falsidade) a certidão da História.
              
Manuel Alegre, Atlântico, 1981
             
             
Não deve haver área da vida portuguesa recente que não se caracterize e defina pela agora já clássica forma de “antes” ou “depois” do 25 de Abril. Reflexões contemporâneas no âmbito da sociologia, história, política, literatura e tantos outros campos de estudo utilizam esta barreira temporal como metodologia inicial de abordagem. Daí que, como Maria de Lourdes Pintasilgo assinalou na sua “Deambulação pelo Espaço/ Tempo do 25 de Abril,” possamos apontar o 25 de Abril de 1974 como um momento fundador, ou seja, como que um ato inicial de todas as histórias possíveis num sentido individual e coletivo. Esta visão do 25 de Abril como um momento novo e fecundo na sua novidade é aliás corroborada e sintonizada com a nossa história coletiva em textos como Ora Esguardae, de Olga Gonçalves ou no poema de Manuel Alegre “Crónica de Abril”, escrito pela pena de Fernão Lopes, com Álvaro Pais nos Paços da Rainha e Salgueiro Maia no Largo do Carmo lado a lado. Por seu turno em Ora Esguardae, título retirado da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, abre-se “(…) uma dimensão ritual que coloca o tempo-origem visado primordialmente em Ora Esguardae‑ o 25 de Abril de 1974 ‑ no horizonte arquetípico da nova dinastia inaugurada por D. João I, horizonte que, por sua vez, é representificação mítica de uma nova fundação da nacionalidade” (Luís Mourão, Um Romance de Impoder ‑ a paragem da história na ficção portuguesa contemporânea. Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1996, p. 100). Entendia-se assim o 25 de Abril como o momento-símbolo de início de um novo tempo na história de Portugal, em que todos os sonhos, frustrações passadas e ansiedades seriam compensados.
 in Portuguese Literary & Cultural Studies 1 ‑ Borders Fall 1998
             
             

   
             
Atlântico, de 1981, é um divisor de águas em sua obra. Se antes, em sua poética, a Memória era possuída pelos fantasmas da Ditadura, a partir daí a História poderá ser reencontrada em sua plenitude e destituída dos referenciais míticos sustentados pelo Estado Novo.
[…]
Em Atlântico a História emerge como reconstrução. A Memória, perdida, comprometida, durante o século XX, com os aparelhos ideológicos do Estado salazarista e alimentada por uma História que tinha a ruína como fundamento, revertida através da indicação explícita do real que era encoberto pelo mito, passa, agora, a indiciar que a História precisa ser recontada, necessita ter seus mitos redimensionados. No projeto poético de Manuel Alegre, Atlântico dará a definitiva forma que os mitos deveriam tomar nessa nova perspectiva a partir da realidade após a Revolução de 25 de Abril.
É preciso, entretanto, antes de se avançar, reafirmar que o projeto de Manuel Alegre é derivado de uma tensão entre Memória e poesia. Se for retomado o processo poético desenvolvido até Atlântico, está-se diante de uma busca clara de uma redefinição da função da Memória na sociedade portuguesa que atravessa o momento histórico da guerra na África, o fim do fascismo, a descolonização e a democracia. A dimensão atlântica pretendida, como era de se esperar, não segue a anterior vocação atlântica da perspectiva salazarista, nem daquela pensada na Comunidade Lusíada por António Spínola (SPÍNOLA, 1974). Há um deslocamento temático por uma geografia definida pela dispersão da língua portuguesa no mundo – a publicação de Nova do Achamento (1976), remontando ao momento da Descoberta do Brasil, pela releitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, é tomada como uma primeira referência de refundição do universo da Língua Portuguesa e da relação que o Portugal democrático deve manter com a terra americana, a África comparece como o lugar da emergência de uma nova História para Portugal. Situar o Oceano Atlântico como o espaço geográfico português por excelência não é mais a retomada das glórias imperiais, mas é, sobretudo, o redimensionamento daquela História que centrava Portugal numa vocação atlântica ufanista de um novo império. Atlântico redimensiona a condição histórica portuguesa, dos atos de bravura às trágicas derrotas. Com isso, percebe-se que um diálogo intertextual claro com as duas obras anteriores da série literária portuguesa que buscaram dar conta da relação direta entre Portugal e o mar: Os Lusíadas Mensagem.Questionar a ordem poética, ou, melhor, problematizar a herança cultural e literária é a perspectiva de Atlântico.
[…]
A Memória individual faz da História uma outra História em que passam a coexistir discursos além dos convencionados. A História dos manuais negada em Praça da Canção e em O Canto e as armas é, agora, outra – não basta mais ela negar os mitos, mas afirmá-los a partir do cotidiano individual. A História, assim, precisa ser tomada em sentido lírico, já que somente pela Memória individual poderia advir a dimensão pretendida na alegoria da reconstrução da Torre do Tombo.
A condição do lírico que estabelece a pluralidade de vozes comparece definitivamente. Se, na obra anterior a Atlântico, a intertextualidade estava a serviço de uma problematização e redimensionamento do épico, em Atlântico, progressivamente, por efeitos da proposição do poema inicial, “A lição do arquiteto Manuel da Maia”, a condição épica é degradada por efeito do lírico. O poeta estabelece a dialética pretendia por Benjamin entre Memória e História, através da implosão do sujeito épico. Não há mais unidade épica a ser seguida para Portugal.
O lírico pode deslocar-se, assim, da interrogação à História para o redimensionamento da Memória. O sujeito poético pode tomar uma nova Memória diversa daquela fora posta em função do evento de Alcácer-Quibir. A História que se compreende aqui é uma construção lírica que não está em função mais de um poder único e centralizador. Há que se perceber que a História se relativiza na distância que se tem dos seus instantes de perigo, como dissera Walter Benjamin, “cada segundo era a porta estreita pela qual poderia entrar o Messias” (1987, p. 232), e o Messias só poderia entrar quando a História tivesse sentido e seu continuum tivesse sido explodido, não se caracterizando mais pelo tempo homogêneo e vazio. Teria sido o 25 de Abril este momento? O poema “Crónica de Abril (segundo Fernão Lopes)” busca responder tal provocação. Aqui, a Revolução de Avis, de 1383, é aproximada a 1974:
A rosa a espada o tempo a lua cheia
entre Abril e Abril memória e acto
este oculto invisível coração.
E o trote dos cavalos os blindados
(quem me acorda no meio do meu sono?)
“Lisboa está tomada”. A rosa e a espada.
Subitamente às três da madrugada. (...)
Continuidade. Descontinuidade.
E o que é ruptura ? E a História? Um caos de acasos.
Kairos (dizem os gregos). Conjunturas
favoráveis. (...)
E não vereis na crónica senão
(sem falsidade) a certidão da História

É explícita a intertextualidade com Fernão Lopes, já indicada pelo subtítulo do poema – continuidade, descontinuidade, de Abril a Abril, o poeta retoma a movimentação da arraia miúda dos lisboetas. A ação histórica que implode o seu próprio continuum é uma ação que a poesia transforma em coletiva. Com a certidão da História, o atestado e o testemunho fazem uma nova Memória ressurgir. O coletivo não provém da retomada do épico, mas de uma recuperação do atestado dado pelo testemunho do guardião da Memória, o poeta. Daí confluir os tempos para que oMessias penetre, e se dê a reversão do tempo vazio e homogêneo em dinâmica temporal, em História. O lírico é reafirmado, reverenciando-se a Memória, guardiã da experiência, no sentido de Walter Benjamin. O poeta canta a História, em seus múltiplos aspectos, em seus acertos e desacertos, em suas glórias e quedas. O fluxo do Tempo, como experiência histórica, volta a seguir da Memória para a História, não pelo reverso como operara a Ditadura: “entre Abril e Abril memória e acto/ este oculto invisível coração (...) Um caos de acasos...”este fluxo seria capaz de deixar que o tempo passasse como experimentação, como forma de recoletivização da experiência histórica. A História é compartilhada entre tantos, ela não é mais o objeto detido por uma classe, por um ponto de vista, por um sentido de permanência – é, enfim, coletiva. Será por isso, no poema “Pais em inho”, que o poeta radicalizará a dimensão histórica portuguesa, nas suas contradições. A exaltação histórica dá lugar à ira, ao reconhecimento do tamanho e das características de um país de contrastes em que otrauma não terá sido superado, como afirmara Eduardo Lourenço: “Chegou a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constânciao país habitável de todos, sem esperar do eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal” (Eduardo Lourenço, O labirinto da saudadepsicanálise mítica do destino português. 4.ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 1989, p. 47).
Mário César Lugarinho, 
 Manaus, AM: UEA Edições, 2012, pp. 79-81, 87-89
          
            
             
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
           
  Comparar a "Crónica de D. João I", de Fernão Lopes com a "Crónica de Abril", de Manuel Alegrevídeo da Escola Virtual, pela professora Helena Rangel

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                        

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/18/cronica.de.abril.aspx]  

terça-feira, 17 de setembro de 2013

FALARIA DO JÚBILO: A REVOLUÇÃO PURA E PRÁTICA



        
Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.
Jorge de Sena, 1956
               
PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos 
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos 
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos 
E por outras maneiras que sabemos 
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que não podem sequer ser bem descritas.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962
               
25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1974
               
O que significa a salvação senão aquele ponto em que os homens desistem de oprimir outros homens, e se retiram com a sua limitada perfeição?
Agustina Bessa Luís, Crónica do Cruzado Osb., 1976
               
O que se passava não correspondia nem para mim nem para os outros à imagem, posta de pé durante muitos anos, do fim da ditadura e muito menos da revolução.
Eduarda Dionísio, Retrato dum Amigo enquanto Falo, 1979
               
Eu vou contar tudo de uma forma muito simples.
Luís Martins, O Outro e o Mesmo, 1980
           
            

25 DE ABRIL
        
            


ORA ESGUARDAE
Olga Gonçalves, 1982
           
Falaria do júbilo, do frenesim, da glória e da coragem do acontecer. Mas calo-me. Antes, olhai. Pois que tudo aconteceu tão pleno, o quê?, ah sim, era ainda Abril, as pessoas sorrindo, mesmo ali, iam e vinham ao longo da rua, seiva no emaranhado das pálpebras, estrépito de muitas emoções rolando corpo inteiro.
E, no entanto, desvelada foi a vigia, como se cada um ainda em seu degrau, e depois os olhos postos no meio da sua marcha. Por outro lado, é verdade também que parecíamos de visita ‑ das serras, da mão direita e da mão esquerda dos rios, dos ribeirões, da campina, das curvas por entre os barrancos, do vento esfarrapado contra os penedos, do bebedouro das aves, dos telheiras e das traseiras onde o crepúsculo amaciava a chuva. Como se chegássemos em cavalo branco, o sol saindo-nos ao caminho, braceletes baloiçando lucilando na Natureza, caminho morno, sim.
Havia um espaço que era o do gesto literário. Eu via-o logo de manhã, os lidaes eram o de gente muito mexida, olhávamos para o relógio, que horas, são?, estávamos sempre dentro da tabela, e já nem fazia mal que falássemos alto, nos campos o arado bordava a terra fundo, as lombas e os cabeços preparando-se para o afago de um outra bafo.
           
«Abaixo o Fascismo!», contraídos os lábios, «Feriado Nacional no 1.º de Maio!», lia-se por sobre os muros, suspeitosa a voz do Guardian: para o povo português este dia será essencial, este dia será um teste.
Qual teste, qual carapuça! Também o Times? Isso são tudo jornais lá de fora, andam com a atenção pegada na gente, bem nos importa a nós o que digam! Que cheguem à Alameda, que espreitem ali ao Martim Moniz, é ver o Dia do Trabalhador! Ordeiro o nosso povo, sim senhores, a Junta não há-de arrepender-se de ter confiança. Ahn? ...Ah, sim? Pois se a direita está na esperança de que haja barulho, bem lhe podem dizer que errou as contas, a malta vai portar-se que nem na procissão da Senhora da Saúde, que é a coisa que uma pessoa mais deseja!
Caça aos pides! Bem feito que as paguem todas! Ainda é pouco, deviam era mandá-los para o Tarrafal, saca nas de reaças!, na «frigideira» é que elas mordem! Se há direito que deixassem fugir tantos!
           
E assim os olhos se rasgaram, pois que, lembro-me, ao princípio, as tardes a dourarem-se, a revirarem-se através de nós, e novas falas com ânimo de carne, portanto carne rara, e novos pactos, portanto uma outra aragem, imaginai-nos, tão-só vivendo de ímpeto, e de algo mais que, fechado nos braços, seria sem rigor mistura de alegria e briga e desespero.
Viva a Junta de Salvação Nacional que dá fim à Polícia Secreta e à Censura, que nos traz os exilados, que reintegra os funcionários despedidos por motivos políticos! ‑ assistimos ao grande estertor de ferramentas delidas, ao termo de um velho torpor, fora a noite, fora o sono.
Homenagem à viúva de Humberto Delgado!, «Assassinos! Assassinos!», aqui, galerias de raiva até à superfície, punhos no ar, vozes crescendo, «Julgamento», «Morte à Pide» , «Julgamento!»
Nada sabíamos desse tempo de ser. Na hora nos deitávamos, sem olharmos à calema, ou antes, fruindo a onda quente, e como?, bem soltos, carregados de querer, mas de medo também, do medo que nos secara derretera os sonos.
«Sim às Eleições Livres», e não é inventado, e não é podre por dentro, desta feita vamos escolher, Viva o Movimento das Forças Armadas que restituiu Portugal ao seu Povo!, quem pudera adivinhar!, alguma vez imaginaste presenciar isto durante a tua vida?
Foi em prol da dignidade humana, afirmou-se. Foi em defesa de um ideal cívico, disseram. Estiveste ontem em Queluz?, que de gente no largo fronteira ao Palácio!, o Costa Gomes a fazer Presidente da República o general Spínola! Falou bem ao País. Bom. Que Democracia não é anarquia. Não senhor, não será, mas aos ditadores não lhes calhou nunca mostrar a tabuada toda do que eles aí chamam de civismo. Que o mesmo é que uma pessoa não se meter ao emprego de desinquietar a alma de cada um, de se deitar à porrada porque parece que lhe vão comer um bocado daquilo que lhe pertence ou por ver que estão a explorá-lo aonde não deviam. Civismo! Di-lo aos outros! Di-lo aos outros onde é que isso começa. Quarenta anos já cumpridos, e a mim não mo ensinaram. Não me fizeram encontrar numa situação em que, de arrenegado, me não sentisse com vontade de quilhar o primeiro que me pisasse os calos.
             
Queres ir a Moura? Vai lá o povo em peso: camponeses, operários, doutores, empregados, estudantes. Anda!, é a festa da libertação! Até lá vão cantores doantigamente, os que o pessoal não podia dizer que ouvia, mas que gostava mesmo deouvir, baladas de protesto, eram aquelas que nos ajudavam a resistir, a engolir a raiva de tanto mal que se passava.
             
E vieram os partidos com sua grande exaltação. Cada um dizendo lutar contra o fascismo, os homens começaram a agredir-se, aquele é facho!, aquele é pelo tempo da outra senhora! ‑ dizendo-se todos de cara limpa surgiram de todas as artérias, do forro escuro das barracas, do rombo espetacular da burguesia, chegaram às praças onde havia bandeiras, os muros e as estátuas ostentando graffiti, línguas deixadas à mercê, revolta, e já não a mesma ordem de perder, já não a mesma ordem de calar,  vivia-se! Alguns impertinentes e de má vontade, gritavam andam a sujar a Cidade!, contudo o mesmo por todo o País, o risco do carvão, contando, armando, divulgando, assim se tornavam íntimas as classes.
Esta mulher abriu a porta, assomou, essa mulher saiu depois. Que elas também vieram, muitas esperavam, antes fadas tutelares, antes esposas de austeros compostos senhores, fazedoras de bilros, tortas, pastelinhos, sem sua grande reserva tinham também despertado com um cravo nos dentes.
Noutras manhãs, outra se lhes juntaram, para muitas a algema e a sujeição faziam parte das suas vidas, não digas ámen a tudo!, porque ficas ainda em casa?, e pertenceram às comissões de trabalhadores, às autarquias locais, algumas se votaram à polícia, devagar sorviam o regozijo de um novo nascimento.
             
Cedo, a palavra liberta, ardinas vão e vêm, anunciam os jornais sem censura, NUNCA choraremos bastante quando vemos / o gesto criador ser impedido.
            
Ah, O texto!
         
cortar, acrescentar, significar, mascarar, desfigurar, exceder, converter, substituir, e a metáfora, e a ambiguidade, e as outras formas de discurso, a alteração da sintaxe, distorcer, obscurecer, inventar, escapar ao «lápis azul» do censor, um grande malabarismo a literatura de jornal, de jornal e não só, mete-lhe aí um parêntesis, agora parágrafo, não achas que está mesmo à vista, pá?, achas que passa, pá?, os gajos topam- nos pá!
           
Ah, o texto! a pincelada esbatida [...].
           
Ah, o texto, o jogo [...].
           
Mas a palavra era palavra, que esplendorosa foi sempre a palavra, e os de grande prazer do amor por ela desciam ufanos a Avenida, o jornal debaixo do braço, à noitedeixavam-no bem aberto no tapete, para o verem logo ao acordar no dia seguinte, seria possível?, sim, isso das notícias com as palavras todas?, os de grande amor por ela e pela liberdade liam uma por uma sem poderem acreditar, como era isso de se dizer tudo agora, sem rodeios, Salazar onde se devia dizer Salazar, Lenine se era Lenine de quem se tratava, os festejos do 1º de Maio descritos até ao último berro de «Abaixo o obscurantismo!», e tudo ali escarrapachado da Pide, os retratos dos tipos a encherem as páginas, e o paleio ali todo sobre os sindicatos, caramba!, uma pessoa até corava, uma pessoa até pensava não estar boa da pinha!... E quando... Eh pá, quando apareceu a notícia da chegada do Cunhal ao aeroporto de Lisboa, o Mário Soares à espera dele, a foto dos gajos a abraçarem-se, não nos venham cá dizer nada, aquilo é que foi desforrar, aquilo é que foi mesmo tirar a barriga de misérias!...
[…]
Olga Gonçalves, Ora Esguardae3ª ed.,
Lisboa, Editorial Caminho, 1989, pp. 13-20 (1.ª edição: Lisboa, Bertrand, 1982)
             
           
25 DE ABRIL DE 1974. REVOLUÇÃO DOS CRAVOS
             
          
ANÁLISE DA CRÓNICA POLÍTICA
             
TÓPICOS DE APLICAÇÃO:
• Intertextualidade com a Crónica de D. João I (1450?) de Fernão Lopes (“ora esguardae, como fossees presente”cap.º 148)
• Estatuto e ponto de vista do narrador.
• Registos de língua.
• Confronto dos vários tipos de discurso e/ou modos de expressão.
• Explicitação do ponto de vista ideológico.
• Estratégia satírica e persuasiva do narrador.
          
UM EXEMPLO:
Confundindo-se quase com o povo anónimo, protagonista, como a arraia-miúda de Fernão Lopes, o narrador homodiegético de Ora Esguardae acompanha com o entusiasmo político-ideológico dos vencedores do antigo regime, derrubado a 25 de Abril de 1974, as primeiras façanhas épicas do momento revolucionário.
São exclamações vitoriosas, são palavras de ordem, são as respostas à chamada «reação» e à «direita», de que se faziam eco os jornais ingleses. A própria linguagem popular, com o respetivo calão, quase sufoca outros registos mais eruditos.
Na euforia ingénua de quem acredita que agora é que chegou a grande oportunidade, vão desfilando as reações populares às novas conquistas, como a manifestação do 1.º de Maio, a «caça aos pides», a adesão às eleições livres, os graffitinos muros e nas estátuas, a abolição da censura à imprensa.
Mas, mais do que narração de sucessivos acontecimentos ou descrição de personagens e ambientes, ganha plena força discursiva a manipulação ideológica do leitor, que resiste, sem qualquer intervalo ou silêncio reflexivo, ao desfile de palavras eslogans, como numa grande e massiva manifestação nas praças e avenidas de Lisboa, cilindrando qualquer hipótese de dúvida, receio ou reserva no sentido inverso.
Se não, vejamos como são tratados os vencidos do golpe militar e revolucionário: «suspeita a voz do Guardian»; «Bem feito que o paguem todos!»; «Alguns impertinentes e de má vontade gritavam andam a sujar a Cidade!»
Em contrapartida, tudo são simpatias para os novos vencedores.
Nesta luta ideológica pela bandeira do novo regime, sobressai a sátira burlesca à censura, penetrando o narrador nos bastidores das decisões políticas, tendo em vista as reações dos leitores, fazendo-se jus ao esplendor da palavra, como se as «estratégias de linguagem e da retórica» residissem apenas no lado da «luta sem tréguas para esconder a realidade».
Apesar de começar o seu texto com o condicional «falaria», dizendo que se cala para convidar a olhar, o narrador deste discurso ideológico nunca deixa de falar, mesmo quando cede voz às massas populares, numa estratégia retórica de persuasão que não admite contestação nem evasivas polémicas.
           
António Moniz e Olegário Paz, Ler para ser. Percursos em Português B. 11º Ano. 
Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 96.
             
          

            
TEXTOS DE APOIO
           
RECENSÃO DE ORA ESGUARDAE
Ao contrário do que o título leva a crer, Ora Esguardae não tem grandes descritivos, mas, sim, diálogos e monólogos, que parecem gravados e através dos quais imaginamos o clima social e emocional dos tempos do PREC e dos tempos que se seguiram, até à presidência de António Ramalho Eanes. Com um grão de poesia, à maneira de Olga Gonçalves, e muita agilidade verbal e colorido, as páginas deste romance recolhem quase todos os slogans do 25 de Abril. Nele há momentos de força e alguns, em boa hora, de lirismo revolucionário e sempre o troar dos risos populares, as marchas dos soldadinhos, o humor subtil da autora. Recomenda-se este livro pela sua qualidade e até como instrumento para dar a conhecer aos jovens a Revolução dos Cravos.
            
            
         
              
SOBRE A ESCRITA E A LEITURA:
A SEDUÇÃO AUTORREFERENCIAL EM 
ORA ESGUARDAE


Ora Esguardae, publicado em 1982, tenta tecer um painel capaz de dar conta da pluralidade de experiências vividas em Portugal após a Revolução dos Cravos, em abril de 1974. Na verdade, como já o disse Maria Lúcia Lepecki (“Ora esguardae, letras para um mural”. In: Sobreimpressões: estudos de Literatura Portuguesa e Africana. Lisboa: Caminho, 1988, p. 151) em ensaio incontornável sobre esse romance, o texto irá se constituir como um mural, elaborando, a partir do fragmento, a sua continuidade. A sua estruturação narrativa é, portanto, descentrada, não linear, contrapondo-se às formas tradicionais do narrar e, principalmente, ao modelo narrativo seguido pela historiografia mais conservadora. […]
O romance de Olga Gonçalves, como dito, é construído através de fragmentos que, reunidos, tentam criar uma ideia múltipla da Revolução dos Cravos. Essa fragmentação amplia as lacunas de significação a serem preenchidas pelo leitor. É ele que irá configurar a emancipação feminina, o surgimento dos partidos políticos e a independência das colônias africanas, por exemplo, como quadros de uma mesma realidade revolucionária. Além disso, como na maioria das vezes as personagens são apresentadas através de suas próprias falas, é o leitor ainda o responsável pela caracterização de cada uma delas, construindo para si a imagem que o texto se nega a dar completamente.
«Aqui nesta sala pequena é onde os senhores passam o tempo quando cá estão. Sentam-se aqui, leem, conversam, dantes é que era movimento pela casa toda. Rosalina, não te vais embora, deixa-te estar conosco. Não vou, não senhores, eu podia lá separar-me disto, fica tudo à minha guarda até que Deus me leve.» (GONÇALVES, Olga. Ora esguardae. Lisboa: Bertrand, 1982, p. 134)
            
A Rosalina devotada, imune às mudanças sociais, que parecem passar ao largo do palácio onde vive, não é descrita externamente por um narrador que a vê e transmite essa visão a terceiros. Ela se manifesta através de seu próprio discurso, ligando-se ao leitor de uma forma mais direta. Daí, a atenção necessária para compreendê-la: não há opiniões sobre a personagem; quem a lê é que as deve constituir. Esse episódio acaba por indicar que Ora esguardae requisita do leitor uma intervenção mais intensa, o que pode ser realçado, ainda, pelo caráter visual de algumas partes do texto. O enquadramento de determinadas cenas reproduz o trabalho de uma câmera, tornando-se a escrita do romance semelhante a um roteiro de cinema: “Um relance maior: o Gilberto aprendeu de canalizador, o Gilberto sabe de canos, mexe no chumbo, fuma mata-ratos, dá o salto, vai para Chartres. E a história recomeça” (Ibidem, p. 67). A presença do discurso em terceira pessoa não é suficiente para preencher as falsas lacunas que se formam. A cena é apenas vista, como se fosse mostrada ao leitor uma sucessão de fotogramas, em que pequenas figuras se sobrepõem e se completam. Este completar-se, porém, não é indicado textualmente. No máximo, a repetição enfática de orações coordenadas induz à noção de que os fatos transcritos possuem um valor semelhante. Cabe ao leitor decifrar que valor é este.
A solicitação de uma atitude mais participativa de quem lê, todavia, não se resume à presença de lacunas interpretativas. Muitas vezes, o convite é feito de forma expressa, reforçando de modo objetivo o caráter autorreferencial do que foi escrito. É o que se pode perceber, por exemplo, ao atentarmos para a ausência, em meio aos constantes diálogos que caracterizam a organização discursiva do romance, de um dos interlocutores, o que pode criar a ilusão de que a personagem se dirige ao leitor:
«Que de guerras em África fiquei eu cheio, estiveste ontem na Granfina?, estiveste para a televisão?, então ouviste: tens dezassete anos?tens o quinto ano?, perguntavam também se o indivíduo tinha bom físico, inscreve-te já para o concurso de sargentos! Mau, mau, mau!, para que é que eles querem sargentos?, para que é que eles querem tropa?» (Ibidem, p. 130)
           
Tomado de assalto pelo que é dito, quem lê é estimulado a posicionar-se frente às palavras da personagem e a repensar essas questões dentro do contexto da obra e de sua própria vivência literária. As convenções comuns são testadas e só então ocorre uma nova configuração de sentidos. Esses diálogos, algumas vezes, além de indicarem ao leitor a existência de um espaço vazio, que pode ser ocupado por ele, pois criam a dúvida sobre o destinatário da mensagem, dão margem a que a própria personagem reflita acerca da construção romanesca, investigando a sua existência e a sua significação dentro do contexto ficcional:
«Se de repente acontecesse
Se eu fosse
Se eu fosse a personagem criada por um escritor, se ele ou ela me empurrasse para a boca de cena, seria legítimo que me deixasse dar um grito. Digo bem, dar um grito: uivo de angústia para a audiência, de aviso para o autor. O autor nem sempre tem cuidado com o tratamento ficcional de nossos gestos, carrega-os de demasiada ilusão, a ilusão que ele necessita, sentado a uma mesa, ondas azuis e zonas fetais a atravessarem-lhe o cérebro, recosta-se para trás na cadeira...» (Ibidem, p. 168)
            
Esta investigação, aliás, termina por caracterizar como ambíguo o espaço em que se encontra o autor, já aqui transformado em discurso e observado pela própria personagem. Para tematizar questões prementes da sociedade portuguesa do período pós-revolucionário, o texto de Olga Gonçalves encena a sua própria ficcionalidade, conduzindo o leitor a uma chave de leitura que pressupõe uma atuação participativa. Discute-se, com isto, a criação como um todo, como processo comunicativo responsável por envolver quem produz, quem recebe e o que é produzido, em um jogo que busca, por fim, através da desestruturação romanesca, refletir sobre o literário:
«... ignora ainda se vai desfazer a personagem na técnica da sua ficção, se a escrita em si própria não é o grande tema, o grande tema na luzição e na cadência e no sortilégio do mal-de-dentro das palavras, o autor ignora ainda se irá imolar-se no laço efetivo entre o seu ego e aquilo a que poderá chamar realidade» (Ibidem, p. 168).
          
Explicitar, porém, a importância do leitor no estabelecimento de um sentido do texto não significa que a interpretação da obra seja orquestrada única e exclusivamente por ele. Há margens de sentido que orientam o caminho a ser seguido, colocando em xeque até mesmo a historicidade da leitura. Até que ponto a passagem do tempo e as novas relações sociais que acabam por interferir em nossa sociedade poderiam nos impedir de perceber no conjunto do que lemos, por exemplo, a escolha por uma orientação política de esquerda, acentuada em vários momentos não só pela fala das personagens, mas também pelas referências intertextuais selecionadas na obra? Aliás, se os trechos de diálogo com o leitor acima citados parecem convidá-lo a tomar uma posição política diante do quadro construído pela revolução, por outro lado podem ser vistos como estratégias de argumentação elaboradas para seduzi-lo e convencê-lo. Mesmo ao fazer perguntas, ao questionar o que observam, as personagens deixam claro aquilo que pensam e a posição tomada diante das transformações sociais vividas no período. Além do mais, como não há, em boa parte do texto, quem argumente de forma contrária ao que é dito por cada uma dessas personagens, o valor dessas falas é realçado e as opiniões nelas contidas, corroboradas. É importante notar-se, contudo, que assumir um posicionamento político alinhado com o pensamento de esquerda não implica ausência de críticas ao que se seguiu à Revolução ou uma leitura meramente sectária do processo. Pelo contrário, as críticas lá estão, principalmente no que se refere aos momentos em que os principais ideais revolucionários foram renegados ou em que, sob o pretexto da liberdade, atos de irresponsabilidade civil foram praticados. É necessário, ainda, ver que Ora esguardae trabalha com dois tempos básicos, o pré e o pós-revolucionário, tempos esses que são valorizados de forma negativa e positiva, respetivamente. O campo semântico das palavras referentes ao “25 de Abril”, na primeira parte do romance, realça esta relação. Ao retratar a euforia e a emoção, elas chamam a atenção por se acumularem nas páginas iniciais. Levando-se em consideração que esta parte resume os temas a serem tratados posteriormente, não é difícil compreender o valor adquirido por elas na estruturação complexa do texto. O sema positivo dos vocábulos se estende, portanto, à imagem da Revolução posteriormente ampliada. Por mais que os diversos leitores atualizem significados diferentes para eles, em todos há a possibilidade de um sema positivo. O seu trabalho de criação partirá, portanto, do campo de seleção vocabular delimitado pelo próprio texto.
          
Jorge, Silvio Renato, “Sobre a escrita e a leitura: a sedução autorreferencial em Ora esguardae A costa dos murmúrios” in Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem n.º 44, p. 381-391, 2012.
                         
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ABORDAGEM LINGUÍSTICA DE USO LITERÁRIO DA LINGUAGEM
A partilha de vozes, a recriação duma oralidade coletivamente vivida, encontramo-la em Ora Esguardae de Olga Gonçalves, através de processos muito variados inspirados no funcionamento da língua oral. A fusão de vozes, o encadeamento de perguntas e respostas, o comentário a discursos relatados, a encenação do dizer (através, por exemplo, de verbos dicendi, de descrições de atitudes), as construções de insistência, o jogo de registos de língua, suportes gráficos variados, banais e inesperados, eis alguns dos processos trabalhados pela autora de modo a recriar a interlocução desligando-a do particular e transpondo-a para um universo de ficção evocador de vivências, de memórias e de sentimentos partilhados por uma comunidade.
Maria Helena de Araújo Carreira, Abordagens linguísticas de usos literários da linguagem”,
Repositório Aberto da Universidade Aberta,
Livro de homenagem à professora Maria Emília Ricardo Marques, 2005
          

 
             

            
ABRIL EM PORTUGAL. A REVOLUÇÃO PURA E PRÁTICA
O que somos (imperativamente) convidados a ver em Ora Esguardae (1982), de Olga Gonçalves, é, antes de mais, o processo político iniciado com a revolução de 25 de Abril de 1974. O imperativo significa aqui não apenas a ostensividade (jubilosa) de um dar a ver mas sobretudo uma determinada metodologia do olhar, inevitável, é certo, visto não existir qualquer não-modo de olhar, mas desenhada com alguma nitidez programática. Metodologia da representificação mítica, como se pode ler na epígrafe retirada da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes: "Ora esguardae, como se fossees presentes... ". Rememorar de um tempo fundador, re-visão das origens ‑ mas também, vê-lo-emos, recomeço das origens como forma de obviar a um tempo presente que lentamente se desvia de uma experiência tida por originária.
O carácter citacional do título, com o seu indesmentível peso canónico, coloca-nos desde logo no rasto de alguns problemas: relações crónica/ romance, escrita da história e legitimação do poder, a história do passado como história do presente. Desenha-se assim um primeiro mapa de possíveis da leitura, a entrada no texto apresenta-se de imediato como um diálogo com uma parcela importante da nossa tradição cultural. Contudo, cedo se verifica que esse diálogo é mais mítico que especificamente intertextual. A referência canónica pretende apenas estabelecer as coordenadas de uma analogia para o funcionamento cultural do texto, contaminá-lo da energia mítica com que as Crónicas suturam um momento particularmente relevante da nossa história. Abre-se deste modo uma dimensão ritual que coloca o tempo-origem visado primordialmente em Ora esguardae ‑ o 25 de Abril de 1974 ‑ no horizonte arquetípico da nova dinastia inaugurada por D. João I, horizonte que, por sua vez, é representificação mítica de uma nova fundação da nacionalidade. A história é sempre história do presente, de uma origem que começa no exato momento em que a narração começa ‑ o resto (bem entendido: o resto que é tudo), é o modo retórico como se retroprojeta a origem a uma ficção de destino ou como se a proclama, arbitrária e voluntariamente, verdade de um sentido que se deseja.
Em Ora esguardae, o sentido que se deseja quer poder reivindicar uma re-fundamentação de origem. O processo retórico é o seguinte: o sujeito enuncia-se enquanto desejo de um determinado sentido, assumindo a subjetividade da sua fala, e portanto o seu lado frágil, mas apaga-se voluntariamente em seguida, mostrando os factos que pressupostamente corroboram o seu ponto de vista, agora num plano, se não de objetividade, pelo menos de um "nós" de autoridade impessoal:
Falaria do júbilo, do frenesim, da glória e da coragem do acontecer. Mas calo-me. Antes, olhai. (...) Como se chegássemos em cavalo branco, o sol saindo-nos ao caminho, braceletes baloiçando lucilando na Natureza, caminho morno, sim.
Havia um espaço que era o do gesto libertário (pág. 13-14).
         
Evidentemente, esta mudança de modo enunciativo não apaga a forte injunção de leitura presente na primeira fala do narrador; aliás, é ela que determina a passagem do escutar ao ver, presentificando a memória, tornando-nos próximos e cúmplices do acontecer. Mais: essa passagem do escutar ao ver, que em termos de estratégia narrativa é a passagem do contar ao mostrar, só em aparência põe o leitor face a face com a cena de origem. Há uma mediação pedagógica que coloca esse mostrar na dependência, subtil mas efetiva, de um contar que induz determinados efeitos: veja-se por exemplo essa comparação que nos transporta em mítico cavalo branco até ao espaço da recém-conquistada liberdade.
Em todo o caso, apesar deste controle remoto da instância narradora, particularmente evidente, como se verá, ao nível da organização macro-textual, há de facto uma intenção de mostrar, de fazer aquilo que na dedicatória se designa de "mural". Porquê um mural? Creio que por duas ordens de razões: pela sua co-extensividade ao acontecimento e pelo anúncio coletivo da sua autoria. Essas "línguas deixadas à mercê" (pag. 17) são precisamente um dos gestos libertários que celebram, cimentam e aceleram os acontecimentos, testemunhando o movimento de uma consciência coletiva que sintetiza em palavras de ordem o fundo dialogismo que a habita. O mural é assim uma forma de auto-escrita da história, acontecimento e gesta num só lance fundacional, testemunho de que a poesia estava na rua. Daí que o texto recolha as palavras de ordem que eles gritam, tornando-se citacional, aglutinador de vozes, espécie de poesia escrita por todos. É uma forma muito particular de fazer crónica: as palavras de ordem reenviam para o factualmente vivido no pós-25 de Abril, pontuam com a sua intensidade própria a sucessão dos acontecimentos, dando-nos não tanto a distância do tempo histórico mas a memória ritualizada da sua re-presentificação afetiva. Como se tudo estivesse de novo a acontecer, sendo que a razão disso é que tudo deve de novo acontecer.
Como nota prévia a este reviver, o envolvimento do leitor nesse ritual deve ser o mais completo possível. Mais uma vez, o texto não se limita à simples força daquilo que mostra, antes sublinha estrategicamente o lugar da receção. No breve espaço de onze linhas, desenha-se de novo o triângulo comunicativo de Ora esguardae: o sujeito singular da enunciação: "lembro-me", o sujeito plural da autoridade e os leitores ativos: "imaginai-nos", a junção de uns e outros: "assistíamos" (pag. 15). Trata-se também de configurar o novo leitor exigido por uma escrita que se movimenta agora sem os entraves da censura e os contorcionismos que a iludiam. Na possibilidade excessiva de tudo dar a ver, no espaço libertário onde tudo pode ser dito, torna-se necessária uma metodologia que salve o leitor/espectador da dispersão in-significante. Mas que autoridade reivindicar sem que ela seja um sucedâneo, por mais disfarçado, do antigo autoritarismo? Grosso modo, diria que a autoridade que se reivindica é, antes de mais, a da própria história, desde que a entendamos como expressão de uma consciência coletiva onde a voz preponderante é a de uma maioria que democraticamente acede à palavra. As vozes da "arraia-miúda" invadem o texto, constituem-se texto, quer dizer: direção de sentido, não só na força motriz das suas palavras de ordem como na referenciação do modo e tempo como elas fundam uma nova ordem. O apagamento voluntário do narrador consiste afinal no mimar destas vozes, dando-lhes o direito de narração segundo os idioletos que lhes são próprios. Fazer crónica não significa aqui filtrar os acontecimentos até uma sintaxe normalizadora mas devolvê-los à sua intensidade originária, à dramatização discursiva que os pensa e com eles esboça novas formas de vida.
Toda a sociedade foi atravessada pela força desses acontecimentos. Porém, o modo elíptico de os referir ‑ por mais significativos que eles sejam: a constituição dos partidos, a independência das colónias, as primeiras eleições livres ‑ dificilmente dá conta da redistribuição dos lugares sociais e dos conflitos que daí advieram. Além de que deixa numa excessiva indeterminação o valor de conquista de cada um e a capacidade transformacional que neles vinha implicada. Claro que quando "o luxo de vivermos é um hossana em corpo inteiro" (pag. 195), o simples comunicar dos factos é uma positividade em si mesma. Mas precisamente por ser em "corpo inteiro", esse "luxo de vivermos" é também autointerpretação, vivência individual dialetizada das transformações coletivas e superestruturais. A força mítica do acontecimento não pode prescindir de um valor de exemplaridade que se mostre ao nível mais simples e anónimo do quotidiano. A verdadeira autoridade da história de que aqui se trata não se alimenta tanto do referencial heroico das grandes personagens, que são sempre modelos utópicos que em última instância naturalizam a nossa descrença ou a nossa impotência, mas da reflexão que vai ser protagonizada, ante os nossos olhos, por um casal da "arraia-miúda".
Com alguma naturalidade, a crónica desemboca na ficção. Trata-se da passagem da verdade para o essencial, segundo o velho preceito aristotélico de que a história nos conduz à verdade mas a poesia nos conduz ao essencial. Não é agora o momento de mostrar como alguma historiografia, desejando alcançar também o essencial, se socorre de estruturas ficcionais ‑ basta lembrar o caso paradigmático das Crónicas de Fernão Lopes. É que Ora esguardae não pretende ser obra de historiografia, usando o referencial cronístico apenas como "efeito de verdade", como temporalização efetiva de um acontecimento que se re-projeta no futuro. De todo o modo, há uma mudança narrativa evidente em Ora esguardae que corresponde de facto à passagem de uma maneira mais cronística para uma maneira mais ficcional. O próprio texto a assinala, quer em termos gráficos (o que já seria suficiente), quer em termos semânticos: "Outro andamento começa" (pag. 25). As suas primeiras páginas lembram muito o início de alguns filmes e séries televisivas: panorâmica geral de uma cidade, lenta aproximação a um bairro, descida até uma dada rua desse bairro, entrada na casa dos protagonistas. Prolonguemos a analogia. Nas sitcoms, as personagens devem ter uma inteligência levemente inferior à da média dos espectadores. Isso permite-nos rir descansadamente, mas sobretudo permite que os seus conflitos se resolvam sempre dentro do âmbito do senso comum, permite promover o senso comum a estatuto de verdade securizante que felizmente nós já possuímos. O casal que dialoga em Ora esguardae parece não fugir a esta regra. Albano é operário da construção civil e tem uma cultura mediana; Gracinda é mulher a dias em casas ricas e não sabe ler. Como é do estereótipo, o homem demonstra possuir uma maior consciência social, ter interiorizado a lei enquanto senso comum. Mas não esqueçamos que estes são outros tempos, quer dizer, outro senso comum. Não o da chamada "ideologia dominante", à qual Gracinda ainda é permeável por contágio patronal, mas o da consciência de classe, ou mais simplesmente, o da justiça social. Que diz este novo senso comum? Pela boca de Albano, diz que o tempo que vivem é um bom tempo, tempo de mudança e progresso, o que não pode deixar de trazer alguns conflitos, mas mesmo isso é também bom porque é aprendizagem da democracia. Mas dizê-lo não basta, é preciso prová-lo. Daí que pela conversa entre ambos desfilem várias estórias de proveito e exemplo: a mulher que se separa do marido porque este aceita ser ministro de um governo que contraria os ideais que antes ambos tinham defendido; a menina rica que abandona' a universidade para conhecer a vida de operária numa fábrica de malas e é posta fora de casa por isso; o engenheiro que dá as ações que lhe pertenciam aos trabalhadores para que eles tenham a maioria na empresa. Mas o senso comum não está nisto, o senso comum está menos nos conteúdos que na sua naturalização. Gracinda conta as estórias, um pouco atónita com as mudanças, um pouco receosa do ruir da velha ordem; Albano sanciona-as em normalidade de progresso e democracia. Não escamoteia o que elas implicam de coragem e confronto, mas nem por um momento duvida da sua legitimidade natural: não é preciso explicá-las ou fundamentá-las, a sua razão é transparente e co-extensiva à razão intrínseca à história. O senso comum, sejam quais forem os seus conteúdos, é sempre uma crença que se esqueceu de que é crença, uma forma de vida que nega o exterior que a pode relativizar, um mito reduzido a filosofemas que só sabem do princípio de não-contradição. Em texto, como aqui acontece, o senso comum é resistência à interpretação. Ora esguardae, com grande, pertinência, vê o argueiro no olho do vizinho (podemos até conceder que se trata de uma trave), quando fala da leitura que se praticava nos colégios do antigo regime: "Entre saber dividir as orações e análise de texto, a interpretação era assim a fugir, uma coisa de cácárácá, não interessava ir ao fundo a valer, ao fundo?, o fundo por vezes é escabroso, desarmónico, acidentado, necessário velar pela inocência" (pág. 89). A pedagogia é agora outra, a necessidade da inocência mítica ainda a mesma. A força vinculativa que dela emerge cumpre-se dissimulando a desaceleração do processo revolucionário. Ou melhor dito, mostrando-o para melhor o esconder, já que apesar de tudo "isto vai prá frente, mesmo com umas desandadelas prá direita, ai vai vai!" (pag. 143). Esta espécie de astúcia do processo revolucionário tem a sua autoconsciência no desejo expresso na dedicatória ‑ "para um Amanhã mais longínquo" ‑ e a sua mediação pedagógico-política mais clara nesta fala anónima: "Mas já se viu uma coisa assim?, o povo a morrer de fome e a votar na AD? Onde é que está a politização desta gente?" (pág. 156). É como se Albano falasse ainda, quer dizer, como se o desarmónico e o acidentado não fossem o mais fundo da interpretação e do real que vem nela, mas simplesmente um deslize momentâneo que o mais elementar senso comum logo corrigirá.
Obviamente, esta confiança e otimismo são tanto a crença de que o texto emerge como efeito deliberadamente procurado pela construção textual. As estórias sobre os modos de vida no fascismo que encontramos a seguir à conversa entre Albano e Gracinda visam também esse efeito, mostrando-nos o que conseguimos vencer e educando-nos acerca daquilo que não devemos voltar a consentir. O seu valor pedagógico é evidente e de certo modo esconde a questão que a simples existência do fascismo coloca a toda a confiança histórica. Mas esconde-a mostrando-a o suficiente para apaziguar esse mínimo incontornável de suspeita e descrença que existe já em todos nós. Em tempo de secularização, o processo remitificador precisa de um salvo-conduto desconstrucionista. Diz-se então que "um escritor pode ser assim, relata factos, relaciona-se com o que vê, cria empenhamentos, chama-lhes Deus, será carência ou o deserto, entregue-se a chave do enigma" (pág. 67) ‑ e entrega-se: "Para o Rodrigo, última figura deste mural" (dedicatória). Para o lugar do filho, que é sempre o lugar do leitor. Recebemos uma chave, sim, mas não a do enigma. Esse existe numa zona mais retraída ‑ deveria dizer: escabrosa? Seja como for, uma zona ainda visível, digamos que inadvertidamente iluminada pelo zelo pedagógico. Percebe-se que o sinal de alarme que origina Ora esguardae é a votação na AD. Sente-se nisso o declinar da revolução e trata-se de reafirmá-la, de mostrá-la de novo. Como se a única resposta ao porquê de uma tal votação fosse a da insuficiência pedagógica. Calam-se assim hipóteses bem mais escabrosas e perde-se de todo a capacidade de pensar para além do senso comum. Recebemos uma afirmação jubilosa, é certo, mas o tropel que ouvimos bem pode ser o do retorno do recalcado. Ou mais simplesmente, o da queda de uma boa intenção no inferno da inoperatividade.
          
Luís Mourão, Um Romance de Impoder, Braga-Coimbra, Angelus Novus Editora, 1996, pp. 99-107
          
          
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/17/ora.esguardae.olga.goncalves.aspx]