sábado, 6 de setembro de 2008

«A Flor», poema de Almada Negreiros lido por Jorge de Sena






  
A FLOR
     
     
«– Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j’ai fait n’est pas bon, je n’en suis plus responsable; c’est que je ne peux vraiment pas faire mieux.» (MATISSE)
   
    


     
Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!
    
ALMADA NEGREIROS
       






     
Vamos deter-nos um pouco neste poema para completarmos a análise que fizemos anteriormente. Reparem como o poeta usa, para estabelecer, digamos, uma longa metáfora da criação, ele usa a criança. Reparem que a criança já apareceu na relação da mãe e agora aparece a criança, ela, a criar. «Pede-se a uma criança. Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém»: esta frase, reparem na sua estrutura, é paralela das outras que nós observámos: «a criança / vai sentar-se / no outro canto / da sala / onde não há / mais ninguém /». E reparem o que resulta: a criança (de que nós falámos) vai sentar-se no outro canto (que é maneira de dizer vai sentar-se no lado oposto a nós, vai sentar-se do outro lado onde estão os sabidos, no outro canto) da sala onde não há mais ninguém (porque não há mais ninguém? não há mais ninguém porque a criação só se processa na mais completa solidão; só onde não há mais ninguém é que é possível criar).

«Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas» (notem a sucessão: «passado algum tempo o papel está cheio de linhas»). Ele não disse «o papel está cheio de linhas passado algum tempo», não disse «algum tempo depois o papel está cheio de linhas», ele disse «passado algum tempo — o que importa primeiro é que algo passou, passou o quê?, alguma coisa que é, de tempo, é o que está dito na sequência. E o que é que depois disso aconteceu?: «o papel está cheio de linhas.» Nós transitámos da criança para o papel ele mesmo, através das frases que ficaram intercaladas e pelas quais nós não tínhamos dado, em que se disse: «pede-se a uma criança que desenhe uma fiar, dá-se-lhe papel e lápis»; no momento em que com a frase se anunciou que se dava papel e lápis, podemos passar directamente para o papel que está presente onde o lápis desenhou linhas. «O papel está cheio de linhas».

Agora reparem: as linhas estão «umas numa direcção, outras noutras»; depois, umas são mais carregadas, outras são mais leves; depois, umas são mais fáceis, outras são mais custosas.

Reparem nas três categorias sucessivas em que as linhas são classificadas. As linhas começam por ser classificadas pura e simplesmente em relação à direcção que têm, é um critério topológico de situar as linhas, a seguir umas são mais carregadas e outras são mais leves.

Além de estarem dirigidas num determinado sentido, umas são mais leves e outras mais carregadas, quer dizer, umas são mais finas, outras são mais grossas, é a segunda categoria em que as linhas se classificam, quer dizer, aquilo que as individualiza dentro da situação geográfica em que ficaram.

E a seguir umas são mais fáceis, outras mais custosas, e entrou imediatamente um critério de realização estética, porque só por esse critério é que nós sabemos se umas linhas foram mais fáceis de fazer, que outras foram mais difíceis de fazer. Porque, em certas alturas, como ele acrescenta, «a criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu». É uma frase acrescentada a todas estas caracterizações em que o conceito de força expressiva surge transposto para a imagem do risco do lápis rasgar o papel, tal foi a força que a criança dispôs no desenhar aquela linha. «Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.» Reparem que apenas o peso do lápis era já demais; nós temos, além de todos os critérios, sobreposto a esse, o critério duma força a que se opõe completamente uma leveza. São os dois pólos de força criadora, que pode ser uma coisa imposta ou pode ser precisamente uma criação extremamente leve

«Depois, a criança vem mostrar essas linhas às pessoas, uma flor! As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança».

Reparem como se parte da palavra flor, quer dizer, aquilo que inspirou a criança não foi, segundo o poeta diz, a imagem da flor, foi a palavra flor, foi porque aquilo que foi comunicar à criança, foi precisamente a palavra que lhe foi dita, é esse signo que foi dito numa palavra que ela ouviu. Quer dizer, essa convenção pela qual nós designamos uma flor, essa convenção andou dentro da cabeça da criança dum lado para o outro, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor; juntar as diversas possibilidades com que uma flor se faz, quando se desenha, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas ou todas, talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor.

O que é que significa este final? Significa que o que importa realmente não é tanto que as coisas sejam postas nos seus lugares, visto que os lugares são afinal uma convenção como outra qualquer, mas sim para que todas as partes de que a realidade se compõe estejam presentes tal qual como na criação integral que o mundo é, é nesse sentido que me aqui aparece que são as linhas com que Deus faz uma flor, é no sentido de que, se Deus fizesse uma flor com linhas, essas linhas feitas pela criança estariam lá todas. Estariam provavelmente fora dos seus lugares; mas é muito mais importante que elas estejam mesmo fora dos seus lugares do que algumas faltem estando as outras todas nos seus lugares.

Ora, vamos agora daqui concluir para certos aspectos desta linguagem criada por Almada Negreiros na sua poesia. Nós vemos que há todo um paralelismo aparente em que a realidade é definida (é cercada), esse paralelismo assume aspectos duma simplicidade aparentemente infantil, como se fosse um tom coloquial da criança que fala, quer dizer, é a procura de voltar a um imediatismo da expressão.

Ao mesmo tempo, notem que este tom coloquial é extremamente intelectualizado, quer dizer, é um tom coloquial de menino extremamente inteligente, de um menino que fala sempre sabendo o valor que as palavras têm, conforme a posição que elas ocupam na frase. As palavras não são ornamentos da frase, não servem para ornamentar uma realidade pré-existente a elas. Reparem como este poema da flor é importante para vermos isso. Não é a realidade que pré-existe. O que pré-existe são as linhas com que a realidade se faz, de modo que o que importa realmente é o tom com que essa realidade é apresentada, a maneira como ela é definida. É isso que faz com que este tom seja extremamente intelectualizado, porque seja um tom em que são as essências e não, digamos, as circunstâncias exteriores o que é considerado. Há como que uma destilação da realidade para que ela seja transformada na sua essencialidade expressiva.

Por outro lado, verificámos como tudo isto se coloca não no que nós poderíamos chamar um impressionismo estilístico mas numa total transposição expressionística. E um outro aspecto, que é extremamente curioso e que tem que ver com outro aspecto da criação literária de Almada Negreiros, é uma certa teatralidade da expressão que provavelmente vos não escapou nestes poemas em que há toda como uma mise-en-scène das frases no sucederem-se umas às outras. As frases surgem como rubricas de teatro sucessivamente, que nos dão precisamente a transformação e a transposição que há entre a realidade em si e a criação de uma nova realidade que a criação estética é. […]
   
Jorge de Sena, “Almada Negreiros Poeta”
in Obras Completas. Vol. I – Poesia, Almada Negreiros
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, 2ª ed.
   
   



«A Flor», poema de Almada Negreiros lido por Jorge de Sena” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-09-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/09/a-flor-poema-de-almada-negreiros-lido.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/09/06/flor.aspx)




segunda-feira, 1 de setembro de 2008

«Mãe!», poema de Almada Negreiros lido por Jorge de Sena






  
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei.
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
  
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
  
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
  
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!


  
Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, 1921.
  

   


  
  
Vamos reparar como este belíssimo trecho se constrói:
  
«Mãe, vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei».
  
Reparem na aparente linguagem correntia da frase, mas se nós notarmos imediatamente a Mãe é convidada a ouvir não o que o poeta conta mas aquilo que a cabeça do poeta conta: «vem ouvir a minha cabeça a contar». Quer dizer, não é «a minha cabeça vem ouvir contar», é «vem ouvir a minha cabeça a contar», vem ouvir a minha cabeça no acto de contar. Ou como os brasileiros diriam aqui: «vem ouvir a minha cabeça contando… histórias ricas», que é uma linguagem infantil, histórias ricas são as histórias que são muito bonitas, que «rica coisa» se diz na linguagem coloquial. É nesse sentido que «história» está adjectivada aqui «Histórias ricas que ainda não viajei».
E encontramos imediatamente uma frase extremamente simples, porque ele apenas está a contar as histórias imaginosas daquilo que ainda lhe não aconteceu nas suas viagens.
Reparem como tudo isto foi transposto totalmente, e agora vemos melhor a frase «Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei», ou seja, se pudesse haver paráfrases, que não pode, porque a linguagem só diz aquilo que exactamente diz da maneira como diz, e não doutra maneira, nós poderíamos propor em vez desta expressão, o seguinte: «vem ouvir a minha imaginação a desfiar as histórias extraordinárias das minhas viagens, daquelas viagens que eu ainda não fiz e que a minha imaginação constrói». Mas não é isso que está dito aqui. O que está dito «vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei». E reparem como está cadenciado: «vem ouvir / a minha cabeça / a contar / histórias ricas / que ainda / não viajei». Reparem que a cadência marcou todos os membros de frase que sucessivamente constroem o sentido dela. «Vem ouvir» o quê? «a minha cabeça» a fazer o quê? «a contar» o quê? «histórias ricas» quais? «que ainda» o quê? «não viajei». «Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!».
Reparem, «vem ouvir» é um vocativo inicial e agora pede-se que a Mãe traga a tinta encarnada para escrever estas coisas, a mãe traga a tinta com que se pode dar realidade às coisas imagina as, essa tinta só pode ser tinta cor de sangue, só pode ser cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado, porque só o sangue, vivo pode dar realidade às coisas imaginadas. Mas, como isto se passa no plano da criação, não é sangue, é tinta cor de sangue. Porque não é com sangue que se escreve e só se escreve nos folhetins; as pessoas que não vivem nos folhetins escrevem com tinta cor de sangue.
E, de repente, parece que temos uma mutação súbita para de novo o vocativo aparecer, assim: «Mãe, passa a tua mão pela minha cabeça»; este é um gesto comum da ternura, passar a mão pela cabeça, mas isto tem imediatamente uma conexão com que está para trás, na frase seguinte: «eu ainda não fiz viagens», que é a repetição de estar a imaginar, «a contar as histórias que ainda não viajei», «eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça», aquela cabeça que está a contar histórias, «não se lembra senão de viagens».
Reparem como a repetição se faz noutros termos. É como se começasse a descobrir-se, e é isso que a linguagem de Almada Negreiros traz, começasse a descobrir-se que a linguagem só descobre por aproximações sucessivas.
A linguagem dá uma versão, procura uma nova versão, acrescenta uma nova versão como se a mesma coisa só pudesse ser apreendida totalmente se for dita de diversos ângulos dela ser dita. Nunca é exactamente a mesma coisa que fica dita, é sempre um pouco mais, que só pode ser dito com as variações sucessivas que permitem o cerco à realidade. Isto foi, sob certos aspectos estilísticos, uma descoberta deste século. Encontra-se, com uma linguagem inteiramente diferente e com raízes estilísticas inteiramente diversas, por exemplo, no estilo de Marcel Proust, em que tudo se faz por aproximação sucessiva: ele dá sempre um adjectivo, outro adjectivo, um outro adjectivo; quando faz uma comparação, ele faz sete comparações sucessivas, não por exercício retórico mas como quem faz um cerco à realidade, corta-lhe todas as portas por onde a realidade pode fugir, fecha daqui, com outra comparação daqui, com outra dali, com outra dali e a realidade fica fechada no meio, porque a realidade não pode ser dita, aquilo que nós dizemos literariamente é a criação doutra realidade. A única maneira que nós temos de dizer aquela, é dando paralelos sucessivos que a fechem ali dentro. E depois nós sabemos que a realidade está fechada ali dentro, é tudo quanto podemos saber.
«Eu ainda não fiz viagens, e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!», «Eu vou viajar», agora reparem na transposição total: «Tenho sede!». Eu tenho sede de quê, tenho sede, eu vou viajar, quer dizer, tenho sede de sair de mim, tenho sede daquilo que se chama, metaforicamente, viagem, mas como menino que é, «eu prometo saber viajar», ele promete à mãe que saberá viajar, ele vai viajar com cuidado, ele vai viajar com atenção, ele vai procurar tirar das viagens o máximo que das viagens se possa tirar.
É um menino ajuizado que não quer que a mãe se assuste com a hipótese de ele viajar, que a atmosfera da relação entre mãe e filho fica extremamente marcada por um toque como esta frase acrescentava tudo o que ele acabou de dizer.
E depois passamos para o que pode chamar-se a segunda estrofe do poema em prosa, em que ele diz: «Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um». Quer dizer, quando voltar, ele vai procurar ter a plena consciência de voltar, ele, subirá os degraus um por um, cuidadosamente, para que o regresso fique perfeitamente marcado nos próprios pés que sobem os degraus um por um. Para isso, como ele diz na frase seguinte, «eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa». Quer dizer, ele vai decorar os degraus, ele vai levar a escada do regresso impressa na memória. Para quê? Porque depois «venho sentar-me a teu lado, tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei», porque nessa altura já viajou; «tão parecidas com as que não viajei», quer dizer, aí temos a união nesta estrofe do que vinha do início com a nova realidade apresentada, que é a experiência de ter viajado em que as viagens viajadas vão identificar-se tanto quanto possível com as viagens que elas tinham sido, primeiro, quando tinham apenas sido imaginadas. E reparem como isso é dito dentro da teoria que nós vemos sair deste poema. «Aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas com as mesmas palavras», quer dizer, as palavras com que se escrevem as viagens que se viajaram são as mesmas palavras com que se escrevem as viagens não viajadas, as viagens imaginadas, não há outras. Desde que se fala das viagens em criação, tanto faz que as viagens tenham sido viajadas como imaginadas. São escritas com as mesmas palavras.
«Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego, muito apertado». Reparem como tudo se passa com imagens da linguagem mais coloquial, da familiaridade. «Ata as tuas mãos às minhas», quer dizer, é uma forma de ternura, quer dizer, prende bem as tuas mãos nas minhas. Mas reparem como isto é já uma criação poética. Não é: prende as tuas mãos nas minhas ou prende as minhas mãos nas tuas: «ata as tuas mãos às minhas».
E reparem como, partindo desta expressão, o poeta imediatamente acrescentou a continuação lógica da metáfora, da imagem que ele criou. «Ata as tuas mãos», então ele vai atar as mãos, para atar bem ele vai dar um nó cego, muito apertado. E reparem como estamos no plano, não duma linguagem metafórica impressionista, mas no plano da criação expressionista da linguagem: não é a expressão realística o que importa, a linguagem cria a sua própria realidade, visto que do realismo imediato, porque isto é um outro realismo, doutro grau, não faz sentido algum dizer que as mãos se atam com um nó cego muito apertado, com um nó cego atam-se fios, atam-se fitas, atam-se cordas, não se atam mãos. No entanto, o atar mãos com um nó cego muito apertado é, do ponto de vista da expressão emocional, o máximo de unidade que a ternura pode criar. Porquê? «Eu quero». Para que é que ele quer sentir-se tão preso desta maneira? Porque ele quer ser «qualquer coisa da nossa casa», porque a única maneira de poder regressar plenamente é ser uma coisa colocada numa circunstância, ele precisa ser como uma coisa do lar, não apenas como, ele precisa ser uma, porque ser como é apenas ser como, ser em relação a, ser em comparação com, ele não quer ser isso, ele quer ser uma coisa da casa. Quer ser um objecto da casa, quer ser uma daquelas coisas que não se desloca da casa para fora se nós próprios a não deslocarmos, porque ela faz parte da casa, ela fica posta no lugar onde a pusermos, no lugar onde a deixarmos.
E ele explica melhor, «como a mesa», ele quer ser uma coisa exactamente como uma mesa que tem quatro pernas e que assenta onde nós a pusermos (as de pé de galo é que têm três e por isso dançam).
E acrescenta: «eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa» E reparem na construção da frase, antes de vermos mais: «eu quero ser qualquer coisa da nossa casa», reparem «eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa». Reparem no paralelo e na dialéctica que se estabelece entre estes membros de frase. «Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa». Ele primeiro quer ser qualquer coisa da nossa casa tal qual como a mesa é. E porque é que ele quer isso? Porque ele quer ter um feitio, quer dizer, as coisas têm uma forma definida, as pessoas não. As coisas têm; as pessoas têm uma falsa forma, que é a nossa forma exterior, o nosso aspecto exterior; o interior não tem forma, e é por isso mesmo (e agora vejamos como esta língua nos dá a chave da própria criação da arte moderna), é por isso mesmo que quem escreve assim pode pintar uma cara com nariz para baixo e um olho para cima, precisamente porque as pessoas não têm senão a forma que nós lhe dermos, e não a forma que fotograficamente parecem ter.
E ele volta à 1ª estrofe para dizer: «Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!», que é a repetição do vocativo anterior em que ele pediu o gesto da ternura. Mas que serve esse gesto agora depois de tudo o que aqui foi dito?
É que quando a mãe passa a mão pela cabeça dele é tudo tão verdade, as coisas tornam-se tão verdadeiras! Quer dizer, a verdade das coisas depende precisamente da emoção, depende precisamente da ternura, o que é exactamente a raiz de toda a criação expressionista.
O expressionismo depende precisamente não da impressão exterior mas da criação transposta do interior, portanto da emoção que rege o momento da criação, o momento em que a Mãe, ou seja a Poesia, se quiserem, ou seja a Vida, ou seja a Liberdade, seja o que quiserem, passa com ternura a mão na cabeça do Poeta.
              
Vamos agora ver como isto se processa melhor ainda, claramente, num outro poema da Invenção do Dia Claro, e antes disso, entre os dois poemas, nós vamos passar pelo início da segunda parte do livro que se chama A Viagem ou o que se não pode prever, que é feito de pequeninos trechos em que há um trecho excelente para nós compreendermos tudo isto, em que ele diz assim: «Eu — e depois tem estas três linhas que dizem o seguinte — quando digo eu não me refiro apenas a mim mas a todo aquele que couber dentro do jeito em que está empregado o verbo na primeira pessoa». Quer dizer, quando o poeta diz eu, ele não se refere apenas a si mesmo, ele refere-se a ele mesmo e a todas as pessoas que puderam caber dentro da expressão em que o verbo está usado, na primeira pessoa. Ele, e não aquelas que se identifiquem com ele, reparem. Não se trata da identificação romântica, em que a pessoa se identifica com a subjectividade do poeta. Não, não, nada disso: trata-se da linguagem só e de caber nela ou não, o que está dito é «aquele que couber dentro do jeito em que está empregado o verbo na primeira pessoa», quer dizer, não tem nada a ver comigo tem que ver com o verbo que está ali da maneira em que ele está empregado. E isto nos dá outra das maneiras de compreendermos o que o modernismo foi, o corte, que às vezes não foi feito por todos, nem foi feito da melhor maneira por todos, nem sempre, mas que é o aspecto fundamental do modernismo do qual nós podemos dizer que de certo modo, no princípio deste século, do ponto de vista da criação estética, uma nova época começou e uma outra terminou, é que o modernismo é o corte com o romantismo que o precedeu, é a época que coloca a linguagem, o poema, a criação estética, acima do poeta, acima das emoções do poeta, acima da subjectividade do poeta. Uma das características mais curiosas de todos os grandes modernistas foi o uso da subjectividade como um elemento análogo a qualquer outro com que se pode entrar na criação estética. Para os românticos, a subjectividade era o centro da sua criação, e no fundo eles sempre acharam que eles como pessoas eram muito mais importantes do que a própria obra. Os modernistas, de uma maneira geral, pensaram todos o contrário, que a obra era muito mais importante que as próprias pessoas […].
  
  



Almada Negreiros Poeta” – conferência pronunciada por Jorge de Sena, no dia 12 de Fevereiro de 1969, e em boa hora gravada por Ernesto de Sousa, que providenciara a sua transcrição. Manteve-se a transcrição porque ela nos dá, na oralidade do estilo improvisado, aquela fluência de ideias e palavras que tanto eram característica de Jorge de Sena.
Este texto viu a sua primeira publicação em Nova Renascença, n.° 7, Vol. 2, Primavera de 1982. Pode ser também lido nas Obras Completas. Vol. I – Poesia, Almada Negreiros, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, 2ª ed.
  
  


“«Mãe!», poema de Almada Negreiros lido por Jorge de Sena” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-09-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/09/mae-poema-de-almada-negreiros-lido-por.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/09/01/Mae.Almada.Negreiros.aspx)



terça-feira, 26 de agosto de 2008

T. S. Eliot lido por Ted Hughes







Virginia — por T. S. Eliot
  
Rio barrento, rio barrento,
o seu curso lento e quente é o silêncio.
Não há desejo mais calmo do que a calma
de um rio. Mover-se-á o calor
apenas no canto do mimo
uma vez ouvido? Os montes ainda
aguardam. Os portões aguardam. As árvores púrpura,
as árvores brancas, aguardam, aguardam,
a demora, o declínio. Vivendo, vivendo
sem se moverem. Pensamentos firmes
sempre em movimento comigo chegaram
e comigo partirão:
rio, rio, rio barrento.
  
Virginia — by T. S. Eliot
  
Red river, red river,
Slow flow heat is silence
No will is still as a river
Still. Will heat move
Only through the mocking-bird
Heard once? Still hills
Wait. Gates wait. Purple trees,
White trees, wait, wait,
Delay, decay. Living, living,
Never moving. Ever moving
Iron thoughts came with me
And go with me:
Red river, river, river.
  


 Red River (Virginia, E.U.A.)    
   
   
Depoimento do poeta britânico Ted Hughes sobre este poema de T. S. Eliot. O poema chama-se “Virginia”, um dos Estados do sul profundo norte-americano.

   
Se sentem este poema como eu, certamente terão ficado impressionados com a forma viva e intensa como nos refere um lugar. Ocorre-nos até pensar que podemos pintar esse lugar. E contudo, que há de descrição no poema? As árvores púrpura estarão perto das árvores brancas? Os portões serão de jardim ou existirão no campo? E haverá casas? As árvores estão junto ao rio? Nos montes? O poema não o diz. Como pode, então, criar uma imagem tão forte? Fá-lo por conseguir transmitir um sentir vivo e intenso. O que o poema, de facto, descreve é a lentidão dominada pela calma, o tempo em suspensão, o calor, a aridez, a exaustão, num tom que sugere a iminência de um perigo opressivo, como uma tarde muito quente antes dos trovões e dos relâmpagos, um dia indolente no sul profundo. Tudo está contido no lento desenrolar progressivo das frases. Talvez a melhor maneira de captar o sentido seja pensar nele como se as palavras fossem enunciadas pelo próprio rio, descrevendo o seu avanço por entre as terras entorpecidas de calor. Os montes, os portões, as árvores brancas, as árvores púrpura, passam sobre o rio, movendo-se mas continuando no seu sítio, como se fossem reflexos à superfície da qual ele vai avançando lentamente.
   
… Vivendo, vivendo
sem se moverem. Pensamentos firmes
sempre em movimento comigo chegaram
e comigo partirão: ...
   
   
Ted Hughes, O FAZER DA POESIA
traduções de Helder Moura Pereira
Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp. 106-108
   
   



“T. S. Eliot lido por Ted Hughes” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 26-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/t-s-eliot-lido-por-ted-hughes.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/26/eliot.aspx)



quinta-feira, 21 de agosto de 2008

António Franco Alexandre lido por Óscar Lopes



    

POEMA INICIAL DE VISITAÇÃO
  
suponha que desprende desaprende
que só de si depende separar-se
em esse início a boca desatenta
em mudo ouvido
suponha que me inventa
  
o liminar deserto desenhando
num princípio de breves acidentes
suponham que conheço a sua terra
o aroma irrespirável dos teares
o azeite da ira e
suponham que os invento
  
suponha que nasci no mississipi
aprendi a falar no vão do vento
os lábios dos navios já não entendem
o amor às idades muito
lentas
suponho que o invento
  
suponha que o início não começa
suponha que o princípio não limita
as palavras são duros tornozelos
o sol ruiu nos vidros deslavados
quase ninguém ou nada
o mergulho da tarde inventa.
  
eu simplesmente ardi fui o retrato
das suas mãos que tecem pesadelos
na margem que deixaram
as migrações do vento
  
o meu país tem dormições abertas
o público dos seus
doces tormentos
eu simplesmente ouvi a luz dos ventos
  
António Franco Alexandre, Gota de Água, 1983.
  
  
   


Óscar Lopes (in Cifras do Tempo, Ed. Caminho, 1990) aponta sete graus, não de exata sucessão, mas de faseamento numa leitura deste poema:
  
  1. fruição de lúdicas recorrências de rimas internas ou finais, ressonâncias, assonâncias (desaprende, inventa), paranomásias (desprende, desaprende), aliterações (que só de si depende separar-se), de estribilhos modulados (supunha, supunham, suponho), etc.;  
  2. observação de imagens ou metáforas surpreendentes (o mundo ouvido, o azeite da ira, vão do vento, lábios dos navios, palavras-tornozelos, dormições abertas, etc.)
  3. saliência de incidências aleatórias: nasci no mississipi; amor às idades muito / lentas; ardi fui o retrato; o sol ruiu nos vidros deslavados; luz dos ventos; etc.  
  4. percepção de modulações básicas nos verbos supor inventar, frequentemente excitando o principal nervo do poema: a injunção/constatação de supor e ser suposto, de inventar e ser inventado, se supor que se inventa (por que não também inventar que se supõe?), ora na activa ora na passiva, com oscilação quanto a haver ou não alocutário;
  5. sugestão pervasiva de desprendimento pensante ou imaginante quanto a ser emissor, destinatário, meio ou mensagem do poema, quanto ao início ou duração, limitação ou ilimitação, presente ou pretérito, acção (só de si depende) ou passividade;
  6. globalmente, pouco mais pode compreender-se do que isto: um poema que sugere a perfeita gratuidade do dizer poético (boca atenta / em mudo ouvido; quase ninguém ou nada / o mergulho da tarde nos inventa; dormições abertas); um país onde quase ninguém diz e nada é dito, ou ouvido, ou percebido, mas esse quaseninguém ou nada está na base de uma asserção eventualmente personificável ou apreensível; há evidentes sugestões de uma fase do dia: o mergulho da tarde;
  7. impressão provisoriamente final: uma poesia do subliminar, mas de um subliminar que todavia acede à palavra, como configuração semi-inteligível e todavia flagrante.


Poderá também gostar de:

  «Entrevista: António Franco Alexandre. ‘Sou certamente um grande especialista em sublimação, hélas’», Inimigo Rumor, n.º 11, Rio de Janeiro, 7Letras, 2001, pp. 46-52. Entrev.: Américo António Lindeza Diogo e Pedro Serra.



Entrevista conduzida por Raquel Santos a António Franco Alexandre, poeta e docente de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

  • Nome do Programa: António Franco Alexandre
  • Nome da série: Entre Nós
  • Locais: Portugal
  • Canal: RTP Int
  • Data: 2006-05-02
  • URL: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/antonio-franco-alexandre/#sthash.XDP1zUJu.wZgMPtV8.dpbs

Resumo Analítico

Início da conversa com referência ao percurso académico do entrevistado; Relações entre a Poesia, a Filosofia e a Matemática; Relato das experiências como docente universitário; Temáticas da sua poesia e opinião sobre a auto-crítica dos escritores; processos criativos; Destaque para o livro de poesia Aracne do qual diz um poema em conjunto com Raquel Santos que lê a última parte desse poema; Destaque para o seu livro de poesia intitulado Poemas; Análise da sua poesia e do seu modo de escrever.  




“António Franco Alexandre lido por Óscar Lopes” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 21-08-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/08/antonio-franco-alexandre-lido-por-oscar.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/08/21/AntonioFrancoAlexandre.aspx)