terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

José Carreiro, entrevista ao Açoriano Oriental





Açoriano Oriental – Quando começou a interessar-se por Literatura?
José Maria de Aguiar Carreiro – Comecei a interessar-me por Literatura quando frequentava o Ensino Secundário, especialmente a partir da leitura de Fernando Pessoa.
          
Letra de música é poesia?
Para mim, letra de música é palavra em forma poética e dá-se num espaço de melodia.
Como dizia Jorge Luis Borges: quando lemos certos versos temos a tendência para o fazer em voz alta. O verso recorda sempre que foi uma arte oral antes de ser uma arte escrita, recorda que foi um canto. De facto, admiro a combinação de letra e música. Actualmente alguns poemas meus e de outros poetas portugueses estão a ser transformados em canções para tenor, flauta, guitarra e talvez piano ou violoncelo. O convite para serem usados poemas meus partiu do cantor lírico de Amsterdão Marcel Beekman, que domina a língua portuguesa. A estreia terá lugar numa igreja holandesa no dia 22 de Fevereiro de 2009. O grupo está interessado em actuar em Portugal continental e, se houver patrocínios, também nos Açores.

Exemplar do livro Chuva de Época anotado por Marcel Beekman e partitura de "A casa onde nos abrigamos".


          
Quais são as suas influências literárias?
Por exemplo aquelas que são explicitadas em Chuva de Época: logo na epígrafe cito o escritor argentino Jorge Luís Borges, muito particularmente o seu livro Os Conjurados, exactamente por lá existir, a meu ver, uma conjura contra o tempo com o qual tenho uma má relação. Aprecio a escrita elíptica de Sophia de Mello Breyner Andresen; a poesia do corpo feita por Eugénio de Andrade; o informulável Herberto Hélder e, claro, o “farsante” Fernando Pessoa.
Como pessoa, somos sempre uma súmula do que existe. Por isso, parece-me que a minha escrita não entra em ruptura com o passado, daí que talvez se possa dizer que se trata de uma poesia de síntese.
          
Acredita em inspiração?
Não acredito na “inspiração” entendida como algo extra-humano (divino). O indivíduo com a sua sensibilidade e susceptibilidade de momento é que está disponível para receber influências várias, a começar pela própria “dádiva verbal”, passando por outros estímulos, como por exemplo, a música (leia-se o poema “Voz Reflexiva”) ou uma imagem (veja-se o poema com o título “Teresa d’Ávila”).
          
O mercado editorial maltrata o poeta?
Diria que publicar um livro hoje em dia pode ser visto como um acto de narcisismo ou, por outro lado, um acto de altruísmo. Neste último caso, a boa vontade social (isto é, a de contribuir para o enriquecimento da Literatura) determina que haja um empenhamento do poeta em ultrapassar as barreiras editoriais e de distribuição.
          
O que a Internet vai trazer de bom e de ruim para a poesia?
A Internet essencialmente veio trazer a divulgação de poesia que doutro modo não seria lida por pessoas fora do círculo de amizades de um poeta.
Apesar do abundante ciberlixo, há também bons textos online. Até já há poetas consagrados que têm as suas próprias páginas e alguns mantêm vivos os chamados blogues.
          
Quais os temas dominantes no seu trabalho?
O título do livro aponta para o campo das relações humanas metaforizadas em “chuva” que acontece repentinamente e de forma passageira, embora intensa.
A segunda parte do livro reflecte sobre a escrita da primeira parte numa atitude irónica e distanciadora.
          




          
A poesia pode mudar o mundo?
A poesia muda o meu mundo, a poesia é um modo de fazer mundos.
A escrita pode influenciar aqueles que a lêem, quer esteticamente, quer pelas eventuais questões que levante.
          
O que escreve sobre o mundo?
O mundo não me atrai o suficiente para sobre ele escrever. Fecho-me e não capto a historicidade nem me comprometo com tempo em que vivo. Digo mesmo que, em relação ao mundo contemporâneo, eu quase apenas “passo”. Sinto-me empurrado pelas circunstâncias, de costas viradas para o futuro. Suspeito, perante as ruínas do passado que contemplo e escrevo, que o devir será sempre uma repetição do que já foi.
Quando meu pai faleceu, relativizei tudo, de modo que não conseguia ver qualquer sentido para a escrita. A própria leitura parecia-me inoperante. A morte parece levar tudo. Perante a morte torna-se vazio de sentido todo e qualquer movimento. Apenas isto: a entrega imediata à terra, ao cosmos, ao sentido brutal dos elementos. Por outro lado, há um instinto de sobrevivência que nos faz proteger do fogo destruidor. De qualquer modo, perante a morte, fico um ser perplexo, mortalmente perplexo perante o sentido a dar à vida. Deverei abraçá-la, projectar uma fuga para a frente, imaginar uma supermente que no futuro arrancar-nos-á da indigna morte da mente? Ou deverei aceitar com indiferença a morte total, a inutilidade da ciência e da religião?
Mas, como dizia Gramsci: “é preciso lutar com o pessimismo da inteligência e com o optimismo da vontade”.
    

José Maria de Aguiar Carreiro em entrevista ao jornal Açoriano Oriental (Ponta Delgada), ano CLXXIV, nº 16358, Quarta Feira, 13 de Fevereiro de 2008, pág. 21.




“José Carreiro, entrevista ao Açoriano Oriental” in Folha de Poesia. Portugal, 19-02-2008. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2008/02/jose-carreiro-entrevista.html (2.ª edição). (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/02/19/entrevista.aspx)


quinta-feira, 11 de outubro de 2007

CRIAÇÃO VELHA (José Carreiro)


      
      
          
              
CRIAÇÃO VELHA
          
I
          
Movem-se quilhas pelas ribanceiras
os putos elevam areias, brincam com os forcados
e por guloseimas trocam as fisgas.
            
No caminho vertem, sacodem as ancas as raparigas.
Colhem olhares, ditos e manguitos que se fazem entre os rapazes.
Soletram-se as carnes com gestos desajeitados.
Nos quintais há o odor a rosmaninho,
uma emanação volátil dos corpos.
            
Passo os dias sem mais nada
apenas um ligeiro cuspir nas mãos antes de pegar na enxada.
Aguardo que o boi tresmalhado se erga e desfigure em gente.
Pareço estar separado dos ritos dos mitos
e das estações.
O que eu sei.
Perla ou imago pode o limo parecer.
          
Por vezes repelidos do chão em ardência
revivemos os lastros dias
imensos desejos.
Por vezes sonhamos
e não fazendo disso um árduo sentido
levamos horas infindas a lavar a escoroar
levamos e trazemos e desculpamos as vociferias.
           
Aqui faz sentido agora a toda a hora
na nossa pressa e gentes
o bafio dos sótãos
a palha quente nas arribanas.
      
II
      
– É aqui que a gente passa o tempo
cordialmente e sem muito o que fazer
é aqui que a gente ri muito muito desmesuradamente
ah a gente ri, faz festas, tudo é assim
muito cordialmente
é assim que a gente gosta
leva o nosso homem para casa e
faz muito amor muito
é assim que a gente gosta.
              
Virgínia deu seu seio
Virgínia sofre por suma
aquela boca imaculada impoluta.
Ó ribeiro manso.
Ali, mesmo junto às pedras,
aquecidas as mãos pousadas sob o dorso, o campo rigoroso.
            
Na metalurgia antiga, a liga, a obra fundida interminada
cobre sem que se possam separar o metal e o fel.
No lugar da Criação Velha
a mulher do ferreiro não diz as antigas lendas.
Se a mulher terminar na montanha a liga, o lugar no casal
é porque se deu a união no forno no cadinho do ferreiro e dela.
             
In Arraianos nºVIIA vida nas aldeas
Santiago de Compostela, Alvarellos Editora, Janeiro 2008, p. 123.
      
      






CARREIRO, José. “Criação Velha”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 11-10-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/10/criacao-velha.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/10/11/lugares1.aspx)


quarta-feira, 12 de setembro de 2007

ULISSES NA ILHA DE CIRCE (José Carreiro)

Flor de Lotus (National Papyrus Center, Giza, Egipto)

      



ULISSES NA ILHA DE CIRCE
     
      
I. ULISSES
    
Que força é esta ou que prazer identifico
no lótus que me ofereces?
O que eu posso comer faz-me diverso de meus companheiros.
O chão reparte a flor de lótus
sendo a escolha uma ordem: o prazer.
Lançarei os braços em toda a certeza do espaço
e voltarei ao mar corrido este torpor que sinto.
Eu demoro, prudente, e mais me separo
de quem me espera.
Algo em mim será sem retorno.
     
    
II. CIRCE
    
Um sopro aclara a falange redita pelo sol.
Um canto obscuro vem trazer a raiva
de me saber traída.
Como podes escolher a outra casa
como posso ser nada se me destino a ti.

    
Chuva de ÉpocaPonta Delgada, 2005.





CARREIRO, José. “Ulisses na ilha de Circe”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 12-09-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/09/flor-de-lotus.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/09/12/ulisses.aspx)


quarta-feira, 20 de junho de 2007

CAMÕES, HERÓI HUMANISTA

                 

               
               
                 
HUMANISMO CÍVICO EM OS LUSÍADAS 
                   
Por: José Maria de Aguiar Carreiro
              
               
                             
              
              
DIMENSÃO EXEMPLAR DA HISTÓRIA NARRADA
              
A história narrada em Os Lusíadas tem uma dimensão exemplarpor apresentar factos e figuras como modelos a seguir, bem como atitudes a evitar (estas em menor número).
              
Quem são as personagens agentes de feitos ilustres notáveis?
              
São muitas. São os heróis da navegação, da conquista, os reis portugueses que dilataram a Fé e o Império, que difundiram a civilização nas terras de África e Ásia; são também aqueles cujo nome ficou na História por actos de excepção… (cf. Canto I, 1-2)



              
Os Lusíadas, canto I



              
Em Os Lusíadas, especialmente a partir do Canto V, no final de cada Canto, há partes que não são narrativas, porque o poeta aproveita para tecer os seus comentários e críticas. Contudo, segundo os cânones da epopeia, o Poema de Camões deveria ser alheio à pessoa do poeta. É neste sentido que Luís António Verney, no séc. XVIII, faz as seguintes críticas:
              
“Errou o Camões em não sustentar sempre o carácter e grandeza do seu herói, que abaixa sensivelmente no canto VIII, do meio para diante. Errou nas enfadonhas digressões que introduz por toda a parte. Errou em acabar quase todos os Cantos com exclamações mui fora de propósito e muito contra o estilo da epopeia.” (in Carta VII do Verdadeiro Método de Estudar, Editorial Presença, p. 168).
              
De opinião oposta à anterior, Eduardo Lourenço, dois séculos mais tarde, diz o seguinte:
              
Os Lusíadas não são a primeira epopeia realista dos tempos modernos, mas a primeira que nada perdeu da sua força, graças ao fulgor da sua forma, quer dizer, graças à sua autonomia de poema humanista, de realidade escrita” (“Camões e o tempo ou a razão oscilante” in Poesia e Metafísica, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1983, p. 34)
              
Um dos propósitos de tais intromissões do poeta é o de doutrinar e construir, por cima do tradicional herói guerreiro, um novo tipo de herói, o humanista.
              
              

O HERÓI POSSÍVEL
              
Camões, em Os Lusíadas, apresenta o heroísmo em termos teóricos, programáticos, havendo uma distância entre a perfeição idealizada e o plano da realidade.
              
Primeiro, Camões anuncia as formas de comportamento que o herói deve evitar (Canto VI, 95-96): não descansar à sombra dos louros conquistados pelos seus antecessores e evitar a ociosidade, inércia e comodismo.
              
Depois, anuncia o programa em forma afirmativa (Canto VI, 97-99): necessidade de exercício, esforço da coragem e capacidade de enfrentar todo o tipo de sofrimento.
              
Assim, advêm-lhe não só honras próprias, isto é, do seu próprio mérito, como também coragem para enfrentar os perigos de guerra e para dominar o medo e a comoção – manifestações exteriores que se forem moldadas dão-lhe uma superioridade moral e uma serenidade intelectual.
              
Numa sociedade justa e bem organizada, um homem destes será chamado ao desempenho de cargos de responsabilidade: será chamado “contra vontade sua, e não rogando” (Canto VI, 99). Requer-se um homem desprendido do poder, que aceite exercer cargos mesmo sem o desejar, apenas movido por uma consciência cívica de servir a pátria.
              
O bom herói, ou bom português, deve renunciar a tirania, a ociosidade, a cobiça, as “honras vãs”, o “ouro puro” (cf. Canto IX, 92-95)   pois,
              
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
              
Cumpridos estes preceitos,
              
Sereis entre Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos
(Canto IX, 95)
              
Apesar de tal prémio, este tipo de herói ainda não corresponde, por completo, ao ideal ético do poeta dos tempos novos.
              
              

O PODER DO POETA
              
Em última análise, quem premeia os nautas com uma ilha mitológica é o próprio vate ao resgatá-los do esquecimento (da lei leteia), dispensando-lhes a fama e imortalidade no e atravésdo seu canto.
              
O rudo canto meu, que ressuscita
as honras sepultadas,
as palmas já passadas
dos belicosos nossos Lusitanos,
para tesouro dos futuros anos,
convosco se defende
da lei leteia, à qual tudo se rende.
(Ode VII)
              
              
Nas estâncias 83 a 87 do Canto VII, Camões chega a enumerar as pessoas que não merecem a glória que o canto do poeta dá: os lisonjeiros; os que actuam movidos por um interesse pessoal em prejuízo de um bem comum e do seu rei; os que actuam movidos pela ambição (os que sobem ao poder por influências, compra de cargos de importância), permitindo dar largas aos seus vícios; e os que exercem despoticamente o poder.
              
O poeta chega ao ponto de se queixar do facto de a aristocracia portuguesa, representada na pessoa de Vasco da Gama, não ser amiga das Musas:
              
Que ele, nem quem, na estirpe, seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga
(Canto V, 99)
              
Por isso, diz, não é por Vasco da Gama que as Musas (o poeta) cantam; é pela pátria:
              
Às Musas agradeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga
              
E mais: “se este costume dura” Portugal ficará pobre em heróis:
              
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
              
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
(Canto V, 97-98)
              
Sem Virgílio não há Eneias, sem Camões, Gama.
              
Em toda a sua poesia, a começar no canto épico, há a expressão, quase cansada, de uma decepção causada por uma crise inerente à sua época.
              

              
O HERÓI HUMANISTA
              
“A melhor forma de serviço público e de empenhamento cívico, aquela em que se logra a desejada simbiose entre a vida activa e a vida contemplativa, é a do homem de intelecto, do humanista, que é simultaneamente um homem de acção, um soldado. Por isso tanta importância tem no nosso discurso histórico-literário o topos das Armas e Letras.
              
Doravante a ideia de mérito e experiência individual, sempre que se trate de eleger alguém para lugares de responsabilidade pública, vai sobrepor-se à ideia de linhagem e privilégio de nascimento.” (Luís de Sousa RebeloA tradição clássica na literatura portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1982).
              
Nesta ordem de ideias, há uma visão de conjunto sobre os heróis portugueses como sendo imperfeitos (cf. Canto V, 92-97), por não ultrapassarem o desenho tradicional do herói cavaleiresco.
              
O poeta diz ter vergonha destes heróis, porque são ignorantes, ao contrário dos Antigos, como Octávio que,
              
[…] entre as maiores opressões,
Compunha versos doutos e venustos
(Canto V, 95)
              
As figuras da Antiguidade são o paradigma humanista da associação das ARMAS e das LETRAS.
              
Da galeria de heróis de Os Lusíadas, Nuno Álvares Pereira é aquele que Camões decide construir à medida do novo conceito de herói, pois é representado como excelente na capacidade de discursar (cf. Canto IV, 14-21) e excelente no campo de batalha (cf. Canto IV, 28-44).
              
Mesmo que historicamente Nuno Álvares Pereira tenha sido um bom estratega e orador, naturalmente que Camões o estilizou tão à maneira de Fernão Lopes que, por sua vez, já o havia tornado lendário.
              
Mas, convenhamos,  em Os LusíadasCamões é o único que comporta majestosamente estas duas qualidades: a conciliação das Armas e das Letras.
              
Se repararem, quando se fala da epopeia Os Lusíadas o nome que vem imediatamente à mente é o de Camões e não o de um herói literárioOs Lusíadas não nos remetem senão para o seu criador; ao passo que, no que toca a outras epopeias, ocorrem-nos os nomes de Ulisses, Eneias, El Cid, Tristão, Hamlet, D. Quixote, isto é, os respectivos heróis literários.
              
“Para compensar uma tal ausência – cujo mistério se repercute sobre a imagem global da nossa literatura – temos uma espécie de herói-vivo, cuja lenda verídica teve o condão de se converter em existência ideal, como é apanágio da ficção perfeita. Referimo-nos, naturalmente, ao próprio Camões, herói da sua própria ficção, que se tornou para um povo inteiro bem mais mítico e, mesmo, bem mais heróico que os heróis exaltados pelo seu Poema.” (Eduardo Lourençoop. cit.)
              


              
AUTOMITIFICAÇÃO
              
“Com efeito, o esforço original de automitificação através do qual Camões tenta escapar à insignificância e ao esquecimento […] não é uma descoberta de Camões. Constitui a vivência mais inovadora do seu tempo cultural.” (Eduardo Lourençoop. cit.)
              
Na estância 154 do Canto X, o poeta caracteriza-se:
              
Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
[…]
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
              
A seguir, na estância 155, pede para servir o rei e a pátria através do seu canto.
              
Em Os Lusíadas, podemos ver a encarnação dos ideias do humanismo cívico na figura do poeta, numa associação do homo politicus e homo theoreticus.
              
O poeta apresenta-se com os mesmos termos que refere César:
                                                                 
 
Vai César sojugando toda França
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas, nũa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
(Canto V, 96)
                   
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
[…]
Nũa mão sempre a espada e noutra a pena
                 
(Canto VII, 79)
                 
                  
Aliás, o naufrágio do próprio poeta é tomado como objecto quer da narração épica quer do canto da deusa Tethis:
              
“Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço o Canto que molhado
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapado,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.”
(Canto X, 128)
              
              
O poeta é cantado como infeliz, mas honroso pelo seu canto.
              
A glória que mais alta se levanta é a dos heróis que Camões narra, mas é também a
sua.
              

José Maria de Aguiar Carreiro

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/06/20/lusiadas.aspx] 



           
        
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