terça-feira, 18 de abril de 2017

OS CATIVOS (Antero de Quental)




OS CATIVOS

Encostados às grades da prisão,
Olham o céu os pálidos cativos.
Já com raios oblíquos, fugitivos,
Despede o sol um último clarão.

Entre sombras, ao longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cai do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das coisas, lentamente.

E os cativos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em íntimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.

E dizem os cativos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o voo e a liberdade...
O homem tem os muros da prisão!

Aonde ides? Qual é a vossa jornada?
À luz? à aurora? à imensidade? aonde?
– Porém o bando passa e mal responde:
À noite, à escuridão, ao abismo, ao nada! –

E os cativos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pesar secreto,
Como quem sofre e cala algum tormento...

E dizem os cativos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devesas?

Tu que procuras? Que visão sagrada
Te acena da soidão onde se esconde?
– Porém o vento passa e mal responde:
a noite, a escuridão, o abismo, o nada! –

E os cativos suspiram novamente.
Como antigos pesares mal extintos,
Como vagos desejos indistintos,
Surgem do escuro os astros, lentamente...

E fitam-se, em silêncio indecifrável,
Contemplam-se de longe, misteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
Como quem ama e vive inconsolável...

E dizem os cativos: Que problemas
Eternos, primitivos, vos atraem?
Que luz fitais no centro donde saem
A flux, em jorro, as intuições supremas?

Por que esperais? Nessa amplidão sagrada
Que soluções esplêndidas se escondem?
– Porém os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abismo, o nada! –

Assim a noite passa. Rumorosos
Sussurram os pinhais meditativos.
Encostados às grades, os cativos
Olham o céu e choram silenciosos.

Antero de Quental, Poesia Completa.  Org. Fernando Pinto do Amaral.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001.





     Intertextualidade

ÀS GRADES DA PRISÃO

Às grades da prisão, olhos extasiados
Veem descer o Sol sobre o mar de metal.
Na tarde de âmbar há murmúrios espalhados
Como preces da Terra à estrela vesperal...


No horizonte rutilante, a toda a vela
Passa um navio; é todo de oiro e de rubis…
Onde vais, onde vais, brilhante caravela
Do rei poeta dum quimérico país?


É triste o alcácer, com salões frios e anosos,
Como as igrejas cheios de ecos cavernosos,
Com grossas portas de mosteiro medieval.


Mas desse interior taciturno, afastado,
Duma estreita janela, olhos extasiados
Veem descer o sol sobre o mar de metal...



Roberto de Mesquita (1876-1923), Almas Cativas


ANTERO LIDO POR MESQUITA*

Sinopse: É conhecida a  influência exercida por  Antero nas gerações seguintes, a sua presença em poetas particulares, como é o caso  de Roberto de Mesquita. Analisa-se aqui o modo como o seu poema «Às grades da prisão» reescreve «Os Cativos», de Antero.

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O poema «Os Cativos» constitui uma amostra muito sintomática daquilo que,  no início dos anos de 1880,  Antero declarava ser a sua «maneira definitiva» de poeta, aquilo que poderemos designar  uma poesia dramática, se levarmos em conta aquilo que ele mesmo afirma numa carta a António Feijó: «Mas, fora desta esfera restrita [da poesia analítica], a poesia, tornada mais complexa, parece-me que requer uma forma sintética, a acção objectiva, o drama (dando à palavra a sua acepção mais geral), poderosa pela sua mesma impessoalidade.» (Quental, 1989: 567). Repare-se nos termos de Antero  sobre o drama enquanto modo objectivo, isto é, representativo, capaz de configurar um mundo exterior ao sujeito poético, dele distanciado,  e também dinâmico,  com acção, implicando por isso a existência de espaço, temporalidade e personagens que entre si trocam falas  – traduzindo-se tudo isso, no final, pela impessoalidade, a tendencial ocultação (ainda que não total) do  enunciador, do sujeito poético,  neste caso. Sabemos  hoje como este desígnio de uma poética da impessoalidade vai desaguar no modernismo português e, em especial, no projecto poético pessoano
«Os Cativos» constituem um poema relativamente longo: treze quadras em decassílabos, com uma estrutura narrativo-dramática em que é possível delimitar  um Prólogo (2 quadras iniciais), seguido de três cenas (de 3+3+4 quadras, respectivamente, e tecnicamente delimitadas como no texto dramático propriamente dito) e de um curto Epílogo ou conclusão (última quadra).
As primeiras duas quadras apresentam a personagem dos cativos, sobre um cenário de fim de dia, descrito em termos de ambiente melancólico propício à contemplação, ao cismar e, finalmente, à interrogação; estamos em presença de uma descrição com certos traços simbolistas, que (juntamente com notórios aspectos rítmicos e melódicos) poderá ajudar a compreender  a projecção posterior do poema.
As três cenas têm uma estrutura interna idêntica e sequencial: a presença dos cativos («os cativos suspiram»), o aparecimento dos interlocutores (as aves, primeiro, e depois o vento e os astros), a introdução da(s) pergunta(s) que lhes é feita pelos cativos e a culminar uma reflexão por vezes formulada em modo interrogativo; finalmente, a resposta, linear e curta, que fecha  cada cena.
Ora, é este poema que surge recontextualizado  no  soneto «Às grades da prisão», de Roberto de Mesquita: em versos alexandrinos, ele recolhe para título e início do verso 1, um fragmento  do verso inicial de «Os cativos».
A sua  estrutura narrativo-dramática retoma a do  poema anteriano: uma  introdução (de idêntica natureza temporal), uma cena (apenas  uma) com  interrogação e uma conclusão –  numa condensação  de processos a que estava obrigada pela própria  brevidade formal  da composição, o soneto: a nível do  espaço descritivo,  do traço narrativo pontual («passa um navio»)  e do despojamento da pergunta, privada do envolvimento reflexivo, filosófico que em Antero a antecede. Aliás, em Mesquita, a pergunta não chega a suscitar  qualquer sinal de reacção por parte do seu (único) interlocutor, numa situação que acentua os sinais de uma solidão irremediável.
A já assinalada modulação simbolista do poema de Antero poderá explicar, em parte, a atracção que exerceu sobre o poeta florentino, num contexto em verbal em que são notórios os traços dessa corrente estética finissecular. Mas, para lá dessa afinidade (e  de outras),  um corte fundamental exercido por Mesquita consiste na mudança do cenário selecionado: o mar, com os seus signos correlativos, especialmente o navio, cuja passagem fugaz quase o transforma num elemento irreal, talvez mesmo uma  ilusão ou miragem fruto de um  êxtase do olhar  que se estende sobre  o mar (de metal) que é o prolongamento metonímico das grades (no soneto de Mesquita os «cativos» anterianos reduzem-se  a uma parte do todo: «olhos», o que introduz desde logo outra envolvência  semântica).
Aquilo que em Antero se exprimia  em termos de  uma interrogação cósmica  sobre a liberdade e o destino, torna-se em Mesquita uma questão mais circunstancial, mais individual, e sintomática de uma condição particular que o conjunto da sua poesia ajuda a confirmar, em termos de uma configuração do  mundo pensado e sentido como cárcere atlântico, metáfora  reformulada  noutros contextos. Deste modo, e numa impressiva representação simbólica, estão todos os contornos semânticos da palavra que o poeta não ousou escrever ao longo do  seu livro de poemas: ilha. Que isto tenha chegado através de Antero apenas acentua a dimensão da literatura como uma conversação (uma tresleitura) infinita, sucessivamente  desdobrada no tempo. Uma conversação que, no campo açoriano, se prolonga ainda na obra de poetas como Pedro da Silveira (anos 50) e J. H. Santos Barros  (anos 70) – numa literatura, já agora, em que deliberadamente se inscreve a insularidade atlântica, açoriana, ou tão simplesmente a açorianidade.
Urbano Bettencourt
(CIERL-UMa; CEHu-UAc)
*Versão (muito) sintética da comunicação que apresentei às Jornadas Anterianas (Ponta Delgada, 7 e 8 de Novembro de 2017)
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MESQUITA, Roberto de (2016),  Almas Cativas e Poemas Dispersos, Prólogo e Organização de Carlos Bessa. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas,
QUENTAL, Antero de (1989),  Cartas I, org. de Ana Maria Almeida Martins. Ponta Delgada e  Lisboa: Universidade dos Açores e Editorial Comunicação.
QUENTAL, Antero de (2001), Poesia Completa, org. de Fernando Pinto do Amaral. Lisboa, Publicações Dom Quixote.


https://urbanobettencourt.wordpress.com/2018/06/05/antero-lido-por-mesquita/



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à Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


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