domingo, 6 de novembro de 2016

As pessoas sensíveis, Sophia Andresen

Ilustração do poema “As pessoas sensíveis”, por Sónia Oliveira.
(in Letras & Companhia 9, C. Marques e I. Silva. Lisboa, Edições Asa, 2013)




As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen

LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora; 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora; 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora; 4.ª ed., 1972, Lisboa, Livraria Morais Editora; 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores; 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra; 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.






Comentário do poema "As pessoas sensíveis", de Sophia Andresen

No poema " As pessoas sensíveis" denuncia-se a exploração social dos mais pobres.
A expressão “as pessoas sensíveis” é irónica, porque as pessoas descritas ao longo do poema, ao viver da exploração dos que trabalham, não são, por isso, sensíveis em relação ao próximo. É precisamente a utilização do advérbio conectivo "Porém", com valor adversativo, na primeira estrofe, que evidencia a intenção crítica do sujeito poético em relação à hipocrisia das pessoas ditas “sensíveis”.
Na segunda estrofe, o sujeito poético denuncia as condições precárias em que algumas pessoas vivem, que só têm uma roupa que seca no corpo, quer quando chove quer quando fica suada. Portanto, cabe aos pobres o trabalho de matar as galinhas para os ricos comerem, dando-lhes de bandeja o produto do seu trabalho. É por isso que “O dinheiro cheira a pobre” - expressão esta que subentende a crítica ao comportamento das “pessoas sensíveis” que desprezam o cheiro a suor de quem trabalha por elas e para elas. Nesta linha de pensamento, o sujeito poético mostra-se contundente na terceira estrofe, quando denuncia inequivocamente a exploração dos trabalhadores humildes por aqueles que só pensam no lucro, tais como os “vendilhões do templo” invocados na quarta estrofe, bem como todos aqueles que apregoam os valores defendidos pela religião, mas que vivem em função dos bens materiais.
Relembrando a afirmação de Jesus Cristo no Gólgota, no momento da crucificação, “Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem", o sujeito poético procede a uma distorção destas palavras no último dístico do poema. Ao contrário da referência bíblica, estas “pessoas sensíveis” estão a ser julgadas por algo que fizeram conscientemente e, por isso, não há perdão para a sua falta de escrúpulos.


Comentário da ilustração que Sónia Oliveira (2013) fez do poema “As pessoas sensíveis”

A aguarela de Sónia Oliveira que acompanha o poema “As pessoas sensíveis” representa em plano aproximado o tronco de uma árvore, pintado em tonalidades acastanhadas ou castanho-avermelhadas. À sua frente, em primeiro plano, folhas verdes e sementes ou frutos amarelos (amarelo dourado) caem sobre uma bandeja que está a ser segurada num galho.

Embora as pinceladas da aguarela desenhem um tronco, a sua coloração vermelha escura assemelha-se a uma mancha de sangue. Por sua vez, o pequeno galho parece-se com um braço e uma mão ressequidos e as folhas e os frutos se parecem com dinheiro em forma de notas e de moedas de ouro.  

A representação do conjunto, uma espécie de árvore das patacas, remete para uma leitura metafórica, ainda mais sendo a pintura uma ilustração de um texto cuja temática é de empenhamento social, característica da literatura comprometida da segunda metade do século XX, em Portugal.

Efetivamente, a ilustração de Sónia Oliveira é uma alegoria da exploração do Homem pelo Homem (denunciada também por Sophia), por encenar, com elementos da natureza, a submissão dos fracos e miseráveis que dão de bandeja o fruto do seu trabalho aos poderosos exploradores que acumulam riqueza à custa do  desgaste e "suor dos outros" .


JOSÉ CARREIRO 



     Sugestões:

  • Proposta de escrita de texto expositivo-argumentativo:

    Elabore um texto expositivo-argumentativo sobre o tema da pobreza, em que comentes as frases abaixo citadas. 



    "É ou não é?", debate na RTP 1, 2022-10-25

  • Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17.

  • O Nome das Coisas, Sophia de Mello Breyner Andresen. Documentário da Panavideo para a RTP,  2007:

  • Crónica de Frederico Lourenço: Crença em Jesus – e a crença de Jesus

    O primeiro cristão cujo pensamento e crença conhecemos é São Paulo. Ora, não há a mínima dúvida de que Paulo acreditava profundamente em Jesus Cristo. Mas, apesar do fervor ardente com que Paulo nos fala da sua fé em Cristo, os seus escritos ignoram a vida e os ensinamentos de Jesus.

    A parte fácil do cristianismo (a crença) está presente em Paulo. Mas a parte difícil – seguir o exemplo que Jesus deu de entrega aos pobres e aos desesperados; de perdão para com todo o tipo de pecador; de não-violência; de rejeição do dinheiro – essa parte está ausente do testemunho paulino do cristianismo.

    Na realidade, parece claro que, desde há dois mil anos, acreditar em Jesus sempre se afigurou mais cómodo (sobretudo a imperadores, reis, papas, bilionários e a ditadores que reinaram com o beneplácito de bilionários e de papas) do que acreditar naquilo em que o próprio Jesus acreditou.

    Ora, Jesus acreditou que era sua obrigação fazer com que pobres e doentes recebessem cuidado, dando-nos assim o exemplo no sentido de nós próprios fazermos o mesmo. Na parte inicial do Evangelho de Marcos, Jesus cura um doente perante a atitude escandalizada de quem só conseguia ver que se tratava de um sábado e que era proibido dar assistência a um necessitado em dia de sábado. Para estas pessoas, a religião era uma realidade autónoma e superior à necessidade de dar ajuda a um desesperado. Sabemos que a reacção de Jesus, depois de curar o doente, não foi branda: olhou-os «com cólera e entristecido com a dureza dos seus corações» (Marcos 3:5).

    Acreditar naquilo em que Jesus acreditava é incómodo? Sem dúvida. Quem é que quer ouvir «Não acumuleis para vós tesouros na terra» (Mateus 6:19)? Ou «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Marcos 6:24)? Ou «Se tiverdes dinheiro, não o empresteis a juros; mas dai-o a alguém do qual o não recebereis de volta» (Tomé 95)?

    Quem é que quer ouvir que é imoral termos mais do que precisamos – enquanto outros não têm o mínimo de que precisam?

    Vejamos o que Jesus diz em Lucas 10:7: «Guardai-vos de toda a excedência [em grego “pleonexía”] porque não há vida no ter em excesso» (Lucas 12:15).

    Vivemos num mundo em que a riqueza excedentária de uns coexiste com a fome de outros.

    «Condoo-me desta multidão», diz Jesus em Marcos 8:2: «não têm o que comer».

    Todos sabemos que, nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, Jesus diz para darmos a César o que é de César; e a Deus o que é de Deus.

    Porém, no Evangelho de Tomé (100) estas palavras apresentam uma diferença fascinante: «Dai a César o que é de César. Dai a Deus o que é de Deus. E DAI-ME A MIM O QUE É MEU.»

    Mas o que haveria para «dar a Jesus» que pudesse ser diferente do que é para darmos a Deus? Estamos perante outra realidade que se sobrepõe à própria religião (notem a estrutura retórica ascendente: César, Deus, Jesus)?

    A resposta está, talvez, em duas palavras registadas por Mateus (8:22) e Lucas (9:59):

    «Segue-me».

    Seguir Jesus é seguir o exemplo de Jesus; e para seguirmos o exemplo dele, temos de acreditar naquilo em que ele acreditava.

    A melhor forma, afinal, de acreditarmos nele.

     

    Frederico Lourenço, “Crença em Jesus – e a crença de Jesus”, https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 2022-10-30

     

    Jesus junto do doente de Betzatá, por Murillo





CARREIRO, José. “As pessoas sensíveis, Sophia Andresen”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 06-11-2016 (última atualização: 30-10-2022). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2016/11/6-de-novembro-de-1919-dia-do-nascimento.html



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