quinta-feira, 27 de junho de 2013

TUDO EM MIM É PRESENÇA TUA (Rui Knopfli)


  
Ilha de Moçambique


               
ENCONTRO

Visito esse lugar.
Procuro-te nesse recanto habitual.
Sei que não estarás lá,
mas finjo ignorá-lo,
procuro pensar que saíste,
que saíste há pouco,
numa ausência breve,
como se tivesses saído
para logo regressares.
Quando chegasses, se tu chegasses,
dir-te-ia: Tu lembras-te?
E o verbo acordaria ecos,
nostalgias distantes,
velhos mitos privados.
Sei que não virás,
conjecturo até, por vezes,
teus distantes, inúteis
diálogos numa praça gris
que imagino em tarde de invernia.
Então disfarço, ponho-me
a inventar, por exemplo,
uma longilínea praia deserta,
uma fina, fria, nebulosa
praia
muito silenciosa e deserta.
Pensando nela fito de novo
este lugar e digo para mim
que apenas partiste
por um breve instante.
E sigo. E de novo protelo
este encontro impossível.
Rui Knopfli, Reino Submarino, 1962

            
"Encontro" ‑ O sujeito poético procura o ente amado num lugar que lhe traz memórias antigas e onde sabe que o não encontrará. Apesar disso, procura paradoxalmente iludir-se conscientemente.
           





             
MONÓLOGO

Adivinho teu corpo dentro
da noite. Soltos os cabelos
cor de areia fina, delidos
os contornos no linho do lençol.
Dormes tranquilamente. Tudo em
mim é presença tua. E, enquanto
dormes, algo de mim habita
e persiste em ti. Tu dormes
e eu espreito teu sono. Algo
de fluido nos liga e envolve.
Vejo-te lucilar na noite,
teus longos inteiriçados membros
fremindo. Momento breve que perdura.
Depois acordas cinzenta,
banhada em pranto,
oferecendo o perfil suave
ao beijo morno de um céu
onde a aurora se demora.
Rui Knopfli, Reino Submarino, 1962

            
"Monólogo” ‑ O eu poético observa o sono da amada e o seu acordar, descrevendo-a e apresentando a sua íntima ligação.
            

QUESTIONÁRIO SOBRE OS POEMAS
1. Estes poemas de Rui Knopfli apresentam sentimentos muito diversos.
1.1. Identifica-os e justifica as tuas opções.
2. Atenta no poema "Encontro".
2.1. Procura estabelecer uma divisão na sua estrutura interna, tendo em conta a evolução interior do sujeito poético [presente/passado/futuro].
2.2. Pode observar-se no texto uma dicotomia de pensamento. Identifica-a e transcreve expressões que a comprovem.
2.3. Atenta nos versos seguintes:
Quando chegasses, se tu chegasses,
dir-te-ia: Tu lembras-te?
E o verbo acordaria ecos,
nostalgias distantes,
velhos mitos privados.
2.3.1. Classifica as formas verbais sublinhadas e identifica o valor dos modos utilizados.
3. Centra-te, agora, no poema "Monólogo".
3.1. Faz o levantamento de palavras ou expressões que transmitam sensações.
3.2. Identifica o recurso estilístico presente na expressão "cor de areia fina" (v. 3) e refere o seu valor expressivo.
3.3. Explica os últimos cinco versos do texto.
(in Expressões. Português 10º ano, Pedro Silva et alii, Porto Editora, 2010)
             
           
           
TEXTO DE APOIO
análise literária do poema «Encontro»
            
O poema [«Encontro»] retorna ao tema de «Despedida», embora Knopfli o intitule «Encontro», lidando, como «Despedida», com um encontro imaginado e prospetivo, que serve de pretexto ao sujeito para efetuar uma viagem de retorno aos meandros da memória em busca dum objeto familiar de cuja companhia se deseja de novo desfrutar. É um poema onde o sujeito efetua consigo próprio um jogo de faz-de-conta semelhante ao que encontramos em «Baldio», jogo que aqui tem por propósito, como por seu turno em «Despedida» e depois em «Baldio», adiar a perda através do «fingimento poético». Confrontado com aquela, a reconstituição do passado pelo «fingimento» torna-se com frequência para o sujeito poético knopfliano único paliativo: «Visito esse lugar./Procuro-te nesse recanto habitual./Sei que não estarás lá,/mas finjo ignorá-lo.» Como acontece ainda em «Despedida», Knopfli recorre aqui igualmente a imagens associáveis ao espaço geográfico-climático europeu («conjeturo até, por vezes,/ teus distantes, inúteis/ diálogos numa praça gris/ que imagino em tarde de invernia») para denotar o sentimento de nostalgia, perda, morte, desenlace e tristeza, e situa nele um sujeito que se envolve, por meio da memória prospetiva, com um sujeito interlocutor não nomeado.
A ausência de nomeação não é um acaso. Lidando ambos os poemas com o toposda separação e perda, há por um lado o «pudor» da parte do sujeito em se descobrir por completo, através da nomeação, na sua nudez emotiva, e há por outro o carácter prospetivo, logo incógnito dessa separação imaginada que se propõe manter no poema. Considerando que o sujeito se dirige neste diálogo invernil imaginado a um ente personificado, não necessariamente humano, constatamos que Knopfli escreve mais uma vez uma elegia à morte antecipada duma relação. Nesse sentido o poema não é um encontro, mas sim uma outra fuga para o reino do antes, conhecido e ideal. Mais do que um encontro, é um reencontro imaginado, que corresponde a um retorno: «Então disfarço, ponho-me / a inventar, por exemplo,/ uma longilínea praia deserta,/ uma fina, fria nebulosa/ praia/ muito silenciosa e deserta./ Pensando nela fito de novo/ este lugar e digo para mim/ que apenas partiste/por um breve instante.»
Embora se situe na mesma linha lírica-elegíaca de «Despedida», «Encontro» é porventura revelador dum sentimento de perda ainda mais profundo do que o sentido naquele, ao constituir-se num exercício prospetivo lucidamente assumido como tal. Aqui temos um sujeito poético que resiste contra a irreversibilidade cronológica através da criação d um cenário futuro de separação em relação ao qual, apesar de se reconhecer ilusório, se permanece ligado como modo de obviar ou protelar a «intolerável separação». Há neste poema, assim, como que um adiamento levado ao ponto extremo do inadiável, como o reconhece o próprio sujeito: «[...] fito de novo/ este lugar e digo para mim/ que partiste/ por um instante./ E sigo. E de novo protelo/ este encontro impossível.»
Formalmente o poema é construído na base da repetição de certos pensamentos-chave aos quais o sujeito retorna ciclicamente no seu processo introspetivo de «evocação da ilusão», como se o mesmo sujeito necessitasse, apesar dum «self-serving suspension of disbelief, de se lembrar a si mesmo, masoquista mente, dessa suspensão. A repetição dos pensamentos-chave surge na forma de versos colocados de modo a demarcar no poema as suas diferentes partes: «Sei que não estarás lá,/ mas finjo ignorá-lo» e «Sei que não virás.» Ainda, para reforçar lucidamente a condição inverosímil da fantasia, o poeta introduz, prosodicamente, o uso do conjuntivo: «Quando chegasses, se tu chegasses,/ dir-te-ia: Tu lembras-te?» Dum presente inicialmente inscrito no poema como se de realidade se tratasse, revela-se na segunda parte o carácter imaginário do referente da evocação poética. O poema consiste em mais um dos malabarismos verbais e de manipulação temporal de Knopfli, onde com destreza são revelados os estados mentais alternativos dum sujeito poético. Apesar da lucidez e contenção emotiva, descobre-se nele mais uma vez o mundo doloroso e trágico da perda e separação irremediáveis. | Fátima Monteiro, O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, pp. 71-73.
              

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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).

 


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/27/ruiknopfli.aspx]

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