segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O PASTOR MORTO (Vitorino Nemésio)

           
"Admirável gado novo", José Carreiro (Feteira Grande, 30-05-2011)

        
O PASTOR MORTO

De madrugada a neve envidraçou-o.
Seus olhos rasos de um espanto podre,
As águias o mediram pelo vôo
E se encheu de silêncio como um odre.

Cheirado dos carneiros atrevidos,
Húmido fica já no fio lilás,
Aquilo sim, é que se chama paz,
Ali, à serra e à morte todo ouvidos!

Lá vêm as flores da neve à sua cara
E seu rubor perdido copiado
Pelo extenso corar das ervas gordas.

Atravessa, atravessa os rolos frios
Do tempo, o nevoeiro, e o passo às hordas
Dourado e podre sob os astros frios.
          
Vitorino Nemésio
          



         
TEXTOS DE APOIO
       
De um único morto anónimo se ocupa Nemésio na singular elegia “O pastor morto”. Hesita-se entre a sublimação redentora e a materialidade desenganada, entre o cadáver “belo” e o cadáver podre. Hesitação veiculada desde logo pelo oximórico “espanto podre” que qualifica os olhos do corpo jacente na neve. Toda a elegia se centra na visão do cadáver imóvel e no silêncio da natureza despovoada que o rodeia – “aquilo sim, é que se chama paz,/ ali, à serra e à morte todo ouvidos”. Não há vivalma, apenas a paisagem, animais e plantas. Para que a intromissão do seu próprio olhar não desfaça a aura de paz solene e trágica do quadro, o sujeito poético empresta o olhar às águias que medem o cadáver “pelo voo” e fá-lo cheirar por “carneiros atrevidos”. Nada se movimenta para fora do corpo do pastor, nem alma nem matéria. Tudo, pelo contrário, converge para ele: “lá vêm as flores de neve à sua cara/ e seu rubor perdido copiado/ pelo extenso corar das ervas gordas”. Apenas no terceto final o cadáver “atravessa, atravessa os rolos frios/ do tempo, o nevoeiro, e o passo às hordas,/ dourado e podre sob os astros fios”. Mas o cadáver não pode atravessar, apenas ser atravessado. Aquilo que passa é o tempo, rolando frio – tal como o nevoeiro movente – sobre o cadáver. Não há regresso do pastor morto à Natureza: esta colhe-o na sua indiferença, dedica-lhe o mesmo cuidado que dedica a um penedo imóvel na serra. Os astros estão, como ele, frios. Mas só ele é que está podre. Mesmo que dourado.
     
Rui Carlos Morais Lage, A elegia portuguesa nos séculos XX e XXI ‑ Perda, luto e desengano, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010, pp. 291-292.
            
                 
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Os dois quartetos põem em contraste o pastor estático no local de sua morte e a movimentação da natureza ao redor. O silêncio ganha estatuto outro na medida em que, tal como procede com imagens domésticas, presentifica-se (“encheu-se como um odre”).
Olhemos a cena novamente: este homem morre na montanha onde provavelmente trabalha, morre em meio ao rebanho que agora o fareja. Para além da delicadeza e simplicidade, o quadro imprime um forte caráter de pertencimento àquela terra – tanto do ambiente que pertence ao homem, como do contrário, que parece mais verdadeiro, do homem que pertence ao ambiente.
Este é o prelúdio para os tercetos finais, nos quais o teor panteísta discutido é patente: as flores parecem absorver a cor do morto que empalidece; a neve,  tornada flor, cai sobre sua face como se a natureza lhe provesse os trabalhos fúnebres; e a imagem final do nevoeiro, aludindo ao tempo, a assimilar completamente o homem.
O verso que sintetiza a sensação de paz (“Ali, à serra e à morte todo ouvidos!”), ao atribuir ação ao pastor morto, sinaliza esta outra possibilidade de perdurar a existência através da libertação da individualidade. A mesma dinâmica vida-em-morte identificada com o todo da natureza está posta em “Desabafo” (“Terei vestido e pão no mar e nos seus fundos / E nos peixes de cor as flâmulas de guerra; / Hei-de cravar o Sol no meu destino.”)
“O Pastor morto” ainda interessa pela sua estrutura; afinal, sua forma e metro são os tradicionais por excelência. No entanto, o tema, para tomarmos a invocação dOs Lusíadas, está mais para a “frauta ruda” do que para a “tuba canora” que os decassílabos sugerem. A antiguidade clássica tinha prescrições claras quanto aos estilos, a depender da natureza dos assuntos. A morte deste pastor anônimo cantada nas notas idílicas da “avena” é elevada não só pelo tratamento a que o poeta lhe dispensa mas também pela forma do soneto, o que revela um traço importante da lírica nemesiana, cujo olhar é extremamente sensível para a beleza das cenas simples.  ‑ Tematicamente, está nos “versos dedicados a uma cabrinha que tive”, em Eu, comovido a Oeste; quanto ao tratamento do tema, em “Canção do Búzio Velho”, no qual a inversão humilde contrapõe a adjectivação do búzio (“velho”, “ridículo”, “malhado”, “búzio de bicho comido”, “relho”, “desusado”) ao valor daquilo que ele evoca e ao canto em si; e, na apresentação da persona poética, em “Desabafo”, cujos versos “Não espero amor nem glória de ninguém: / Espero terra e cinza” condensam este sentimento de desprendimento e humildade.
       
Leonardo de Barros Sasakil, “Palavras escuras, luz do canto: Vitorino Nemésio e o decadentismo-simbolismo” in Revista DesassossegoFFLCH/USP.
       

       
                             
SUGESTÕES DE LEITURA
      
   
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/20/pastor.morto.aspx]

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